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terça-feira, 22 de junho de 2010

Os Lusíadas e sua ilha enamorada - Luís de Camões


Página de rosto da 1.ª edição de "Os Lusíadas", 1572






Odete Soares Rangel


Os Lusíadas, poema épico de Luis Vaz de Camões é composto de dez cantos e seu tema principal é o descobrimento do caminho marítimo para as Índias, primeira viagem de Vasco da Gama. Um dos objetivos da obra é abordar a história lusitana, salientando algumas das principais passagens.


É o primeiro poema regular da renascença, e foi influenciado pelas obras clássicas de Homero e Virgílio.


Apesar de Cristã, a obra está repleta de referências ao paganismo, por essa razão necessitou consentimento da Inquisição de Portugal para que pudesse ser publicada.


As passagens mais célebres da obra são os episódios Inês de Castro, a partida da frota portuguesa, as cenas do mar e de combates, e as cruéis cenas de guerras e navegações.


Merece destaque, os episódios do Velho do Restelo e Gigante Adamastor, este último, além de amedrontar os portugueses, mostra o lirismo de sua história de amor e seu destino trágico. Também, a ilha dos amores por seu clímax de erotismo deve ser lembrada.


Ao final, o poema profetiza os altos destinos dos portugueses, característica de inegável força portuguesa.


CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE “OS LUSÍADAS”


O objeto de estudo é o Canto IX, episódios “Ilha Enamorada” - estrofes 51-64 e “No Palácio de Tétis” – estrofes 87-95.


Entendo pertinente iniciar citando esta passagem do herói Camões. Herói porque, apesar de ter vivido até o último momento, sofrendo dores e privações na mais extrema miséria, ele criou obras grandiosas como esta e amou a Pátria incondicionalmente. Numa das últimas cartas, escreveu:


“Em breve estará a minha vida no fim, e então, todos verão como tanto amei a minha Pátria”, a Pátria que ele cantou e idolatrou:


«Como testa da Europa, sua culminância,
O Lusitano Reino está situado,
Os países aqui o fim da terra alcançam;
Aqui na água do oceano o sol se lança
Onde fica cada noite repousando.»
(...)


A obra “Os Lusíadas” foi publicada em 1572 por Camões e traduziu-se numa das melhores produções literárias da literatura universal, cujas características renascentistas são muitas.


O homem renascentista buscava a perfeição, e fazia isto imitando os deuses, os quais na obra “Os Lusíadas” são humanizados, inclusive vivenciando sentimentos mesquinhos, como a inveja (Baco), a paixão (Vênus), dentre outros sentimentos.


A mitologia grega, que influenciou Camões e todos os artistas renascentistas, era composta por vários deuses (politeísmo) que se diferenciavam dos homens apenas por serem imortais, pois possuíam sentimentos humanos, como por exemplo, o ódio, e comportamentos humanizados.


A obra “Os Lusíadas” é um poema narrativo de grande extensão. Narrado em 3° pessoa, linguagem perfeita, seu assunto é heróico. O tema central da epopéia expressa valores da aristocracia guerreira: o culto da coragem e da honra; o desejo de glória e fama; a preocupação com o destino.


“Os Lusíadas” é a mais importante epopéia do Renascimento Europeu – movimento literário, científico e artístico que se caracterizou por imitar a civilização grega e latina e está entre as maiores de todos os tempos. A referida obra nega a tradição judaico-cristã. Glorifica a nudez, suprime o pecado e restitui o homem ao paraíso terreal.


Nessa obra, Camões recriou fatos históricos, e descreveu pormenorizadamente regiões, situações estranhas e fenômenos naturais mal conhecidos. Ela nos traz um lindo canto de louvor e glória do povo português. Quando Camões a compôs, Portugal estava no auge de seu império, conquistado na aventura heróica de sua gente, pioneira no desbravamento do mar ainda desconhecido.


Nos Lusíadas é narrado o momento máximo dessa aventura, a viagem em que Vasco da Gama descobriu o caminho para as Índias, em 1498, marco da expansão renascentista do mundo ocidental. Também, fala do que há de grande, de maravilhoso e emocionante na história de Portugal.


Ainda hoje se mostra em Macau uma gruta, na qual Camões completou o seu manuscrito. Quanto à estrutura, a obra divide-se em três partes: a estrutura interna, a estrutura externa e os planos da narrativa.


ESTRUTURA INTERNA


A estrutura interna é composta pela Proposição, onde o Poeta expõe os seus objetivos; pela Invocação, onde o Poeta invoca as Tágides ou Ninfas do Tejo; pela Dedicatória, onde dedica o poema a El-Rei D.Sebastião e, finalmente, pela Narração que se inicia a partir da estância 19, no canto I, e vai até a estrofe 144 do Canto X. Mais detalhadamente, teríamos:


A proposição é a exposição do assunto, ocupa as três primeiras estrofes do poema. O nosso poeta declara que espalhará por toda parte a fama dos heróis portugueses que fizeram a grande viagem do descobrimento da Índia; diz também que cantará a glória de reis (D. Sebastião) e conquistadores, para onde levaram a fé cristã; diz, enfim, que seu canto objetiva exaltar a coragem de um povo heróico, capaz de façanhas superiores às dos maiores heróis do passado, sendo digno de conquistar memória imortal.


A Invocação, estrofes 4 e 5 do Canto I, é o pedido de inspiração às musas. Na religião antiga, as musas são nove deusas, filhas de Zeus e Memória, cujas funções estão ligadas ao canto, à poesia e às artes em geral. São elas que inspiram os poetas e artistas. Camões invoca as Tágides (ninfas do Tejo) para que ajudem na composição do poema.


Na dedicatória, Camões destinou sua epopéia a Dom Sebastião, rei de Portugal. Ele dirige-se ao jovem monarca, da 6° a 18° estrofe – Canto I, chamando sua atenção para o canto patriótico que celebra os heróis; também enumera algumas personagens e episódios mais ilustres de seu país.


A narração é a maior parte do poema. Vai da estrofe 19 do Canto I até a 144 do Canto X. Começa com o Concílio dos deuses, que nos mostra Júpiter, o deus supremo do Olimpo, chamando todos os deuses para uma assembléia, que tem por objetivo definir o futuro das navegações lusitanas. Júpiter relembra o apoio já dado aos portugueses em outras batalhas; Baco é ferrenhamente contrário aos portugueses; Vênus os defende por achar que são parecidos com os antigos romanos, seus protegidos e por esperar ser homenageada por eles ao final da navegação. Marte, apaixonado por Vênus, apóia essa deusa e, no fim da discussão, Júpiter decide em favor dos portugueses, que podem seguir sua viagem; porém Baco vai tentar impedir seu sucesso.


O epílogo – estrofes finais do canto X, mostra a desilusão do autor com uma pátria que não merece mais ser cantada e elevada e com a esperança de que o Rei D. Sebastião seja capaz de reverter tal situação.


ESTRUTURA EXTERNA


Inspirado nas antigas epopéias clássicas, “Os Lusíadas” narram a história do povo português, tendo como eixo a viagem de Vasco da Gama às Índias. O poeta dividiu sua epopéia em 10 cantos, com estrofes de oito versos, sendo os seis primeiros de rimas cruzadas e os dois últimos de rimas emparelhadas. Canto é a maior unidade de composição poética da epopéia. Esta possui 1102 estrofes e 8816 versos decassílabos, que obedecem a um rigoroso sistema rítmico chamado de oitava, cujo esquema prático é ABABABCC. O canto mais breve é o VII, tem 87 estrofes; o mais longo o último, tem 156.


PLANOS DA OBRA


Os planos da narrativa são constituídos pela narração histórica - História de Portugal, discursos de Vasco e Paulo da Gama, feitos ao rei de Melinde e ao Catual, e também pelas profecias de Júpiter, do Adamastor e de Tétis; pela narração da Viagem de Vasco da Gama à Índia; pela narração mitológica da intervenção dos deuses e, finalmente, pelo Poeta que apresenta diversas considerações e reflexões. O narrador no plano histórico é Vasco da Gama, no plano mitológico é Luís Vaz de Camões.


EPISÓDIO


"ILHA DOS AMORES” - SÍNTESE DO CANTO IX


Sendo “Os Lusíadas” uma epopéia, trata de narrar um fato heróico e grandioso e de interesse nacional e social. A Ilha se coloca à frente da armada portuguesa e os navegantes ao desembarcarem vão encontrar todas as maravilhas do prazer terrestre proporcionadas pelas divindades do amor.


Nas estrofes 52-64, temos a descrição da ilha dos amores. A ilha é o lugar dos encantos, sensual e erótica, com claras fontes, vales amenos, árvores, frutos e animais.


As ninfas encontravam-se na ilha de Vênus, onde ocorre a recepção regada com vinhos e música para festejar as núpcias entre as deusas e navegadores.


Nas estrofes 65-88, os portugueses foram premiados, pelos seus feitos heróicos, nas de n° 89/95 temos o registro de que seu prêmio fora alegres distrações com as ninfas.


Uma profecia é lançada por Diana (deusa da caça, dos bosques, filha de Júpiter e de Latona, irmã de Apolo): o castigo aos povos que receberam mal os portugueses. E, dirigindo-os ao alto de um monte, indica-lhes o globo, a “grande máquina” do mundo conhecido até então. Anuncia-lhes outros desbravadores do Oriente. Os portugueses partiram da ilha e retornam a Portugal: concluí-se, então, o percurso marítimo de Vasco da Gama que assegurou o poderio português no Oriente; e estava configurada a bravura épica de todo o povo lusitano.


SÍNTESE DAS ESTROFES 51-64


As naus iam navegando para Portugal e procuravam abastecer-se de água para a longa viagem, quando, ao romper da aurora, avistaram a ilha, significado alegórico “insula divina” em virtude de ser habitada por deusas e encantar por sua beleza. A ilha é um pomar onde a natureza produz todos os frutos necessários à vida, sem necessidade de cultura.


Nessa ilha, Camões realiza os planos histórico e mitológico: os portugueses são regalados com todas as alegrias da vida, desde os prazeres sensuais com os amores das ninfas habitantes, aos prazeres intelectuais com a visão da máquina do mundo, cuja miniatura é feita por Tétis ao Gama do alto de uma colina desta ilha.


Superadas as dificuldades na Índia, os Portugueses regressam a Pátria. Os Catuais - autoridade civil e religiosa dos Malabares (região, na costa ocidental da Índia de Canará ao Cabo Comorim) tentam retardar a frota portuguesa no aguardo das naus que viriam de Meca (cidade sagrada, dos árabes, pátria de Maomé), mas a armada parte em sua viagem de volta.


Vênus resolve premiar os heróis com prazeres divinos: a Ilha dos Amores (51-87) e seu simbolismo (88-95). É nessa ilha que ocorre a noivado de Vasco da Gama com a ninfa Tétis (deusa do mar) e a união de seus marinheiros com as nereidas (deusas mitológicas que habitam o mar), sendo esse um dos momentos mais sensuais dos Lusíadas.


As naus ao dirigirem-se para Portugal, ao romper da aurora avistaram a ilha que Vênus fazia-na mover-se para que os portugueses ali aportassem, imobilizou-a quando viu os nautas se dirigirem para uma praia de areia e conchas.


Das colinas brotavam as fontes nas quais o arvoredo se espelha com seus frutos perfumados comparados à beleza de Dafne - filha de Peneu e amada por Apolo - que perseguida por este último foi metamorfoseada em loureiro.


Narciso, filho de Cefis, se inclina sobre um tanque e floresce a anêmona, por quem Vênus suspira.


Adonis, filho e neto de Ciniras, (Rei de Chipre e de Mirra) cometera incesto com sua filha Mirra. Sua mãe foi transformada em planta com o mesmo nome. Ele fora morto por um javali, sua amante Vênus fez nascer do seu sangue uma flor, a anêmona.


A Flora, deusa das flores, está em competição com a deusa dos frutos (Pomona).


Apolo, filho de Latona, assassinou involuntariamente seu companheiro Jacinto e do seu sangue fez nascer flores, transforma Filomena (filha de Pandion, Rei de Atenas). Ela foi metamorfoseada pelos deuses em rouxinol. Actéon (caçador) surpreendeu Diana no banho e foi por esta transformado em cervo.


Desembarcaram os nautas, algumas ninfas na floresta tocavam música, outras fingiam andar a caça, os Argonautas (tripulantes) da nau Argos, comandados por Jasão, percorreram o mar negro da Grécia à Cólquida, em busca do velo de ouro, realizaram a primeira viagem marinha.


64
Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas deusas, como incautas;
Algumas, doces cítaras tocavam,
Algumas, harpas e sonoras flautas,
Outras, co’os arcos de ouro se fingiam
Seguir os animais, que não seguiam.


No canto X, os portugueses continuam na ilha dos Amores, são homenageados com um banquete, e uma ninfa profetiza as glórias que alcançaram na Índia (1-74)


NO PALÁCIO DE TÉTIS


SÍNTESE DAS ESTROFES 87-95


Enquanto os marinheiros passeiam com as nereidas (deusas mitológicas que habitam os mares), Tétis conduz Vasco da Gama ao topo de "um cume alto e divino" (edifício de cristal e ouro). De lá lhe mostra uma miniatura do universo (ação minuciosa = terra como centro) "a máquina do mundo" que descreve as regiões do mundo nas quais estaria inserida a descoberta do Brasil (caminho marítimo das Índias) onde encontrariam o pau vermelho (pau Brasil) e usaria o nome de Santa Cruz, também, o futuro dos portugueses, e profetiza sobre o povo lusitano: Estrofes 87-88 a 92 - 95.


Na passagem do final do poema, o plano mítico dos deuses e o histórico dos homens encontram-se: os portugueses são elevados, simbolicamente, à condição de deuses, pois só aos últimos é permitido contemplar a máquina do mundo. De acordo com as metáforas no canto X, essa máquina deve ser entendida não como verdade científica, mas como símbolo de um patamar superior, a ser atingido um dia pela ciência racional.


Continuaram os prazeres, Tétis no Palácio, as outras sob as árvores e no meio das flores, assim ficam felizes as ninfas e os guerreiros, configura-se o momento de maior erotismo. Era o prêmio final pelos grandes feitos (88), pois estas ninfas, Tétis e a ilha são as honras que dão valor a vida.


Os prazeres da ilha são os triunfos, as coroas de vitória, a glória e a admiração que despertam. Explica o Poeta que as ninfas são símbolos das honras e glórias que dignificam a vida.


A antiguidade imortalizava no Olimpo (a residência dos Deuses, numa das montanhas da Grécia antiga) estrelado, nas asas da Fama (divindade), os homens que por dolorosos caminhos praticassem grandes ações e alcançado os cumes da virtude.


A imortalidade era um prêmio do mundo, os deuses todos foram homens. Na estrofe 91, Quirino era Rômulo patrono de Roma; os dois Tebanos Baco e Hércules, ambos naturais de Tebas. Na estrofe 92, foi só a fama que os nomeou deuses, imortais. Por isso o poeta exorta àqueles que estimam a Fama e tornam-se escravos dela.


A ambição, a ganância e o vício da tirania eram refreados, pois dinheiro e honrarias tomados indignamente não dão o “verdadeiro” mérito. Esse “tomais”, estrofe 93, pode referir-se a cobiça de ouro e ambição de honras ou a apoderar-se de algo que não lhes pertença. Se existirem leis justas e invariáveis que não lese os pequenos em detrimento dos grandes ou na guerra, a combater contra os Mouros, se farão fortes os reinos e todos ganharão e terão riqueza merecida juntamente com as honras.


Assim farão glorioso o rei ora com o conselho, ora com as armas e ficarão imortais como seus antepassados. Se assim procedessem, seriam contados entre os heróis e recebidos nesta Ilha de Vênus.


Que as imortalidades que fingia
A antiguidade, que os ilustres ama,
(...)
(IX, 90)


Não eram senão prêmios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo c”os varões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos.
(IX, 91)


Para que eu pudesse entender um pouco desta obra tão grandiosa, necessitei recorrer a informações extras para, pelo menos, ter uma visão da sua complexidade e do seu todo. Foi nessa busca que constatei que cada canto apresenta episódios diferentes, mas que se inter-relacionam com o todo.


Ao contrário do que pensava, o herói dessa obra não é Vasco da Gama, mas sim o povo português de quem esse era representante. Entendi que “A ilha enamorada” apresenta uma grande sensualidade, claramente denotada nas relações das ninfas e portugueses, também nessa; tudo frutifica e é belo.


No canto IX e X, temos o final glorioso do poema. Vênus, protetora e guia dos portugueses, decide premiá-los pelos duros trabalhos da expedição, leva-os a “ilha divina”, na qual se concretiza não só o noivado de Vasco da Gama com Tétis, como também, a união dos marinheiros com as nereidas, um dos momentos mais sensuais de “Os Lusíadas”.


No palácio, Tétis conduz Vasco da Gama a um monte mostrando-lhe o globo, a grande máquina do mundo conhecida até então. A obra termina com a visão desta, que pode interpretar-se como o símbolo do saber pelos homens.


Em última análise, foi-me de grande valia e apaixonante realizar essa pequena análise, e surpreendeu-me o fato de Camões ter vivido na mais decadente miséria e ter escrito uma obra tão grandiosa que represente tão bem a história de Portugal.


BIBLIOGRAFIA
1. SPINA, Sigismundo. Os Lusíadas. RJ. Grifo Edições, 1974.
2. SARAIVA, José Antônio. Os Lusíadas. RJ. Livraria Editora LTDA, 1978.
3. RAMOS, Paulo Emanuel. Os Lusíadas. Portugal. Editora Porto, 1999.
4. GOTLIB, Nádia. Literatura Comentada Luis Vaz de Camões. SP. Editora Abril Educação, 1980.
5. BENÍCIO, General. Os Lusíadas, Edição Comentada. RJ. Biblioteca do Exército, 1980.
6. BERND, Maria Elyse. Literatura Portuguesa. POA. CPP, 1998.
7. SARAIVA, Antônio José. Estudos sobre a arte d’os Lusíadas. LISBOA. Editora Gradiva,1992.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Desforra - José Saramago

Odete Soares Rangel


O conto, embora considerado por muitos como banal, é extremamente rico em imagens, metáforas, representações simbólicas, movimentos, metamorfoses, cujos ritos a natureza se encarrega de passar.


O rapaz vinha do rio. Nossa vida é composta de etapas evolutivas, cada uma dessas etapas pode ser considerada um rito de passagem, como, por exemplo, quando nascem os primeiros pelos da puberdade no rapaz.


O suor que escorria pelo pescoço representa o fluir através do movimento da água, o limo ainda gotejante é a criação, pois se reproduz nos lugares úmidos. Limo emergindo das águas simboliza vida, fertilidade, potencialidade. A inércia dele é o lado negativo. Na água turva tem-se o lado perverso, traiçoeiro, pois se pode afundar nesse terreno desconhecido de impureza, enlamear-se, e aqui não só no lodo efetivamente, mas numa metáfora de enegrecimento da imagem de uma pessoa.


No rio em movimento, na lama, no suor, nos fios de limos gotejantes temos a presença da água como fonte de vida, meio de purificação, o que remonta as mais antigas tradições. A água escorrendo verte a fertilidade, o movimento das bolhas de gás do lodo assemelha-se a respiração humana. Esse movimento da água e do ar representa passagens entre o interior (sagrado) e o exterior (o profano).


O barco como a vida é uma navegação perigosa, os remos originam as ações. A barca é uma segurança na travessia, também pode representar o corpo físico que serve de veículo para a alma.


A rã, olhos globulosos (globo-esfera), o círculo é o símbolo da eterna perfeição, representando a ressurreição, o fim do ciclo de uma vida está ligado ao nascimento, início de outro. A rã simboliza a metamorfose através das fases da sua vida, ela necessita adaptar-se as mudanças, pois em cada ciclo ela possui um corpo diferente adequado ao ambiente em que se encontra. A fertilidade dela simboliza as relações sexuais indiferenciadas porque ela é da água e da terra. Na pele branca da goela da rã, esse branco pode identificar uma das fases da sua vida, o branco para o ancião representa uma vontade de chegar ao celeste, também lembra-nos as vestimentas ritualísticas. O branco está presente na pintura da parede.


A ave azul no seu vôo rasante parece feliz e querer brincar ou testar os limites da água. O pássaro azul representa a esperança, símbolo da perfeição. Representação do azul há no próprio céu azul pela ausência de cor. Essa cor é pura e fria, mas representa a pureza, o equilíbrio, o vazio e a ausência. O azul claro é maravilhoso, inacessível. A ave azul simboliza passes da felicidade, era como se estivesse anunciando o encontro do rapaz e da rapariga, porém não há aproximação entre eles. A visão que eles têm, ambos em lados opostos do rio, lembra os contos infantis quando a donzela beija o sapo e vira príncipe.


O rapaz sobe a ladeira sem olhar para trás lembrando Sodoma e Gomorra e, também, Orfeu que não podia olhar para trás. Metálica, a cigarra lembra um instrumento musical, “roia o silêncio”, isto é subverte, quebra a harmonia.


O rito de passagem no fluir do rio através da sua nascente, sua trajetória sempre em movimento, e seu desembocar no mar pode ser comparado a esse mesmo percurso da vida, cuja morte do ser humano simboliza o retorno da alma ao céu.


As transformações se dão em vários momentos, como por exemplo, na areia calcinante que passa a ser um chão de barro que refrescava os pés. Os pés na lama podem significar a fertilidade do rapaz.


O porco é o símbolo das tendências obscuras, sob todas as suas formas, da influência, da gula, da luxúria e do egoísmo. O prazer sai da lama e das impurezas. Escreve São Clemente de Alexandria citando Heráclito “o porco tira o seu prazer do esterco”. O desespero do porco durante a castração mostra o seu protesto, as manchas do vermelho através da faca ensangüentada, da palha manchada, a presença do sangue vermelho, brilhante simbolizam a excitação, a transgressão, o cartão vermelho usado no futebol, além de ser o princípio da vida, o primeiro alimento do corpo. Aqui podemos referir-nos a obra “The scarlet letter” de Nathaniel Hawthorne em que numa comunidade Puritana, uma mulher comete adultério e é punida com o uso de uma letra A vermelha no peito simbolizando o seu pecado, através desse símbolo ela seria reconhecida e rejeitada por todos. 


A lama significa terra misturada com água, água turva – perversão. Esta pode conectar-se ao menino que está na fase da puberdade. Ela também simboliza matéria primordial e fecunda, da qual o homem, em especial, foi retirado segundo a tradição bíblica.


O rapaz no limiar da porta que é a fronteira do sagrado percebe a castração do animal que se alimenta da própria esterilidade, novamente um outro rito, cujo ciclo se fecha com o animal comendo partes do seu próprio corpo, sai dele e volta para ele. O rapaz volta para dentro bebe água que lhe escorre pelo corpo, sai de casa atravessa o olival, cujo retorno recupera toda a paisagem.


Percebe-se que a água perpassa todo o conto, a presença do rio é como se essa água movimentasse a própria história fazendo-na acontecer.


A imobilidade da rã e do rapaz num determinado momento pode significar o desejo de ambos, ela à espreita de um inseto para alimentar-se, ele espreitando a rapariga para satisfazer seu desejo, é como se o movimento, o ruído pudesse quebrar essa magia e afastar seus objetos de caça.


O despir do rapaz simboliza a nudez como o início da vida, o libertar-se de uma cegueira de si mesmo, despertando para uma nova fase, um novo e desengonçado corpo se revela, e com a nudez da mulher se dá a descoberta do outro (homem-mulher), ambos se descobrem na sua sensualidade e sensibilidade.


Novamente o rio tem um papel significativo na história, ele se confunde com o rapaz e a rapariga. O rio e o corpo assumem uma mesma imagem, líquido do interminável corpo (rio) e o corpo da rapariga. O rio é a travessia representada por uma necessidade de superar obstáculos; um outro estado da alma. O curso das águas é a corrente da vida.


Os círculos simbolizam os ciclos da vida: o diário em que cada dia acresce um elo nesse ciclo; o das estações do ano, o próprio ciclo anual dos doze meses, o das fases da vida, o das reencarnações. O mergulho e o efeito desse nado é como se o autor recortasse um instante desse quadro complexo dos ciclos que, também, podem ser concêntricos, mostrando o esforço gasto, o desgaste no viver essas várias fases que nem sempre são tão benéficas e prósperas. O rapaz volta na posição do rio. O rapaz está partindo e amadurece para uma nova fase da vida, o limiar entre a infância e a fertilidade, o porco está privado dessa.


Enfim, o autor explora as neuroses urbanas, a circularidade da vida rotineira, o mito circular, o homem moderno com seu ir e vir.

domingo, 20 de junho de 2010

Pai contra a mãe - Machado de Assis

Odete Soares Rangel

O conto Pai contra a mãe, com características realistas, foi publicado em 1906 na obra Relíquias de Casa Velha.

A narrativa tem como ambiente o Rio de Janeiro do século XIX, período que precede a abolição da escravatura. Narra a história de Cândido Neves, um capturador de escravos que não se adaptava a nenhuma outra função, e estava com dificuldades financeiras. Caçar escravos trouxe-lhe novo encanto e virou profissão, eis que não precisava obrigar-se a nada, apenas usar as habilidades que já possuía.

Cândido desesperançado e desesperado havia saído para levar seu filho à roda dos enjeitados. Desorientado resolveu encurtar o trajeto, quando, então, se deparou com a escrava, objeto de sua salvação.

O conflito dá-se entre Cândido Neves – o caçador de escravos que precisava dinheiro para salvar o seu filho, e Arminda – a escrava fugida de propriedade de um senhor de escravos. Esta acabou abortando seu filho na luta pela fuga. Creio que podemos atribuir a esse fato, a origem do título do conto.

Percebe-se o caráter trágico do conto, assim como, que ele nasceu da maldade dos indivíduos ou da estrutura escravocrata brasileira. Os escravos não eram tratados como seres humanos, eram coisificados. Eles serviam a seus donos que os submetiam a condições desumanas, sujeitando-os a humilhações e mutilações de toda a natureza. Dessa forma, não importava o sofrimento e a dor de Arminda, ainda que implorasse por clemência em nome de seu filho que viria nascer, mas prevaleceu a lei do mais forte, seu dominador.

No momento em que ela aborta, seu dono entra em desespero, mas pode-se depreender que tal atitude se deva a perda de dois escravos: o feto e a possível morte de Arminda, as quais lhe ocasionariam um prejuízo e não por outro motivo qualquer.

O narrador é irônico ao descrever que os escravos eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Obviamente, os que corriam os riscos e enfrentavam o perigo da fuga era porque não gostavam de submeter-se a essa vida desumana. A citação “Além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói” fala do escravo que custava caro para seu dono.

Por significar uma ação de manutenção da ordem, traduzia-se o ato de caçar escravos em nobreza, embora não fosse um ato nobre. A obrigação, porém, de atender e servir a todos desagradava Cândido e feria seu orgulho, o qual ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Ele não gostava de submeter-se ao cumprimento das normas que lhe eram impostas.

Na sociedade não era diferente. As normas rígidas eram ditadas e as pessoas submetidas a elas, embora contrárias à sua vontade. “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”. Cândido, com essa expressão, tenta aliviar sua consciência pela morte do filho da escrava que ocorreu quando estava sendo capturada, pois a ele a única coisa que importava era salvar a vida do seu próprio filho.

O conto fala da escravidão e da luta pela sobrevivência. Numa sociedade tão injusta e desumana, na qual para sobreviver qualquer atitude é válida, ainda que represente um mal para outrem. Cândido é mais um oprimido, para livrar seu filho do abandono provoca a morte do filho da escrava.

O conto leva o leitor a refletir como a escravidão é maléfica para a sociedade e incita-o a voltar-se contra ela. O autor ironiza quando mostra a escravidão como natural, mas a considera desumana e absurda. Machado era contrário ao patriarcado e favorável ao trabalho livre.

Nesse conto, verifica-se toda uma condição humana de vida, uma escala de valores sobre uma sociedade plana. A moral de Cândido é ditada pela necessidade, a do dono; pelo poder e pela propriedade. Ele queria recuperar a escrava e pagava por isso. Cândido Neves de vítima da sociedade, passa a ser o opressor em relação à Arminda.

sábado, 19 de junho de 2010

Caso da Vara - Machado de Assis

Odete Soares Rangel


O conto "Caso da Vara" se passou no período imperial brasileiro, época em que a escravidão ainda se fazia presente. O texto, inicialmente, foi publicado na Gazeta de Notícias em 1891, três anos após a abolição da escravatura no Brasil.

É narrado em terceira pessoa, o personagem central é Damião, os demais personagens são o pai dele, Sinhá Rita, João Carneiro e Lucrécia.

Ao longo do texto, encontramos inúmeras expressões que configuram o sentimento de medo e de insegurança que oprimiam Damião.

Damião fugiu do seminário, porque não possuia vocação para o clero. Como sabia que seu pai o levaria de volta, e não tinha a quem recorrer, refugiou-se na casa da viúva Sinhá Rita. Essa mantinha um relacionamento com João Carneiro, padrinho de Damião. Ela não admitia intrometer-se em causas familiares, mas sensibilizada com as súplicas de Damião, decidiu ajudá-lo. Mandou chamar João Carneiro e pediu que intercedesse a favor de Damião junto ao pai dele.

O rapaz mais esperançoso, relaxou e contou anedotas que animaram a negrinha Lucrécia, criada da casa. Ela descuidou-se dos afazeres domésticos, isso irritou Sinhá Rita que prometeu puní-la, caso não concluísse as tarefas até à noite.

Lucrécia, submissa a Sinhá Rita, estava condenada a continuar sendo um nada, era uma negra de onze anos, muito magra, possuía uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda.

Lucrécia não concluiu o trabalho, Sinhá Rita, incomodada, pegou-a pela orelha e pediu a Damião que lhe alcançasse a vara para surrar a menina. Ele queria proteger Lucrécia, mas precisava proteger-se a si mesmo, então entregou a vara, apesar da menina ter suplicado por ajuda e perdão.

João Carneiro não aprovou o pedido de ajuda de Damião a Sinhá Rita e prometeu puní-lo. Estava atormentado, teria de convencer o compadre ou iria se ver com Sinhá Rita. Desejou que Damião morresse ou que o seminário fosse extinto; assim se isentaria de confrontos. Pensava no pedido infernal que lhe fora feito! Enviou uma carta a Sinhá Rita, informando-a do insucesso junto ao compadre, mas que tentaria, novamente, no dia seguinte. Ela, por sua vez, respondeu que se ele não salvasse Damião, eles não se veriam mais.

Nesse conto, há uma alusão à questão de se dar uma tarefa muito difícil para quem não tem competência. Por exemplo, Napoleão era um estrategista, se fosse delegar uma tarefa dessas a um barbeiro, o resultado seria catastrófico. João Carneiro viu essa missão como uma batalha.

O conto fala da luta das pessoas perante a vida, vivemos em uma sociedade paternalista; nesta, o pai se achava no direito de definir o destino dos filhos.

Na realidade, atualmente, uma grande parte da população é de escravos devido a um sistema capitalista altamente excludente. O dinheiro e o status definem o lugar que cada um pode ocupar, ou está no topo ou à margem da sociedade. Um trabalhador que durante um mês ganhasse um salário mínimo, teria direiro, tão somente, a um quarto de senzala e comida, assemelhando-se a situação dos escravos há época.

A estrutura social explica isso, o pai assumiu um compromisso perante a Igreja e faria qualquer coisa para honrá-lo, assim como a seu nome, pois seriam exigências para ser alguém e se inserir na sociedade.

Há um continuísmo da sociedade patriarcal, na qual a mulher está submissa ao homem. O desenho social mostra o contraste entre aparência e essência, ou seja, o que ocorre à margem da sociedade. A mulher disputa seu espaço por baixo do pano. Elas defendiam-se a si próprias, ou seriam escravizadas, haja vista a discriminação da raça negra.

O conto é narrado em terceira pessoa, o personagem central é Damião, os demais personagens são o pai dele, Sinhá Rita, João Carneiro e Lucrécia.

Ao longo do texto, encontramos inúmeras expressões que configuram o sentimento de medo e de insegurança que oprimiam Damião.

Damião fugiu do seminário, porque não possuia vocação para o clero. Como sabia que seu pai o levaria de volta, e não tinha a quem recorrer, refugiou-se na casa de viúva Sinhá Rita, a qual mantinha algum tipo de relacionamento com seu padrinho João Carneiro. Ela não admitia intrometer-se em causas familiares, mas sensibilizada com as súplicas de Damião, decidiu ajudá-lo. Mandou chamar João Carneiro e pediu que intercedesse a favor de Damião junto ao pai dele.

O rapaz mais esperançoso, relaxou e contou anedotas que animaram a negrinha Lucrécia, criada da casa. Essa descuidou dos afazeres domésticos, o que irritou Sinhá Rita que prometeu puní-la, caso não concluísse as tarefas até à noite.

Lucrécia, submissa a Sinhá Rita, estava condenada a continuar sendo um nada, era uma negra de onze anos, muito magra, possuía uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda.

Ela não concluiu o trabalho, Sinhá Rita incomodada pegou-a pela orelha e pediu a Damião que lhe alcançasse a vara para surrar a menina. Ele queria protegê-la, mas precisava proteger-se a si próprio, então entregou a vara, apesar da menina ter suplicado por ajuda e perdão.

João Carneiro não aprovou o pedido de ajuda de Damião a Sinhá Rita e prometeu puní-lo também. Estava atormentado, teria de convencer o compadre ou iria ver-se com Sinhá Rita. Desejou que Damião morresse ou que o seminário fosse extinto; assim se isentaria de confrontos. Pensava que pedido infernal lhe fora feito! Enviou uma carta a Sinhá Rita, informando-a do insucesso junto ao compadre, mas que tentaria, novamente, no dia seguinte. Ela, por sua vez, respondeu que se ele não salvasse Damião, eles não se veriam mais.

Nesse conto, há uma alusão à questão de se dar uma tarefa muito difícil para quem não tem competência. Por exemplo, Napoleão era um estrategista, se fosse delegada uma tarefa dessas a um barbeiro, o resultado seria catastrófico. João Carneiro viu essa missão como uma batalha.

O conto fala da luta das pessoas perante a vida, vivemos em uma sociedade paternalista; nesta, o pai se achava no direito de definir o destino dos filhos.

Na realidade, atualmente, uma grande parte da população é de escravos devido a um sistema capitalista altamente excludente. O dinheiro e o status definem o lugar que cada um pode ocupar, ou está no topo ou à margem da sociedade. Um trabalhador que durante um mês ganhe um salário mínimo, conseguirá, apenas, um quarto de senzala e comida, assemelhando-se a situação dos escravos há época.

A estrutura social explica isso, o pai assumiu um compromisso perante a Igreja e faria qualquer coisa para honrá-lo, assim como a seu nome, pois seriam exigências para ser alguém e se inserir na sociedade.


Há um continuísmo da sociedade patriarcal, na qual a mulher é submissa ao homem. O desenho social mostrou o contraste entre aparência e essência, ou seja, o que ocorreu à margem da sociedade. A mulher disputava seu espaço por baixo do pano. Elas defendiam-se a si próprias, ou seriam escravizadas, haja vista a discriminação da raça negra.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago não morreu!

Odete Soares Rangel


O menino José de Souza Saramago nasceu em 16 de Novembro de 1922, na cidade de Azinhaga, Santarém, Portugal. 

Ao longo da vida tornou-se um dos maiores escritores da literatura portuguesa (poeta, romancista,  dramaturgo e contista), foi sucesso no mundo inteiro. 

Sua obra nos traz grandes ensinamentos, como ter um olhar holístico sobre o que está ao alcance da nossa visão, e acontecendo no mundo. Sua obra vai ser sempre atual, por exemplo, o Ensaio sobre a cegueira, traz questões bastante relevantes e contemporâneas, como: as situações nos presídios, a corrupção, a violência, a humanidade de uma dona de casa na acolhida aos cegos, etc. Saramago costumava dizer que essa obra era muito violenta e que queria que o leitor, ao lê-la, sofresse tanto quanto ele enquanto a escrevia. Creio que todos os que leram o livro sofreram sim; mas também aprenderam, despertaram para a cegueira cotidiana que impede seu desenvolvimento e evolução. O romance deixa bem evidente que cego não é o que não enxerga, mas aquele que não quer ver. Nos faz refletir de quão passivos somos frente a situações e pessoas; não os percebemos, nem lhes damos a atenção e o reconhecimento que merecem.

A obra de Saramago tem um valor inestimável, e será lida por todas as gerações. O mundo perdeu um intelectual que defendeu suas convicções com coragem e coerência. Com sua saída de cena, perde a cultura, perde a literatura, perde a educação e perdemos todos nós que soubemos olhar sua obra com os olhos do coração, e interpretá-la com a alma.

José Saramago morreu em Tías, Las Palmas, Espanha, na data de 18 de Junho de 2010, aos 87 anos por complicações respiratórias. Aliás, ele não morre, seu espírito repousa, seu corpo adormece e sua palavra fica eternizada em suas obras. A seguir transcrevo sua poesia Na Ilha por Vezes Habitada como homenagem a esse grande escritor, o qual considero um expoente impar da literatura portuguesa.

Na Ilha por Vezes Habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

Produção de Saramago


Romances
Terras do Pecado (1947)
Manual de Pintura e Caligrafia (1977)
Levantado do chão (1980)
Memorial do Convento (1982)
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)
A Jangada de Pedra (1986)
História do Cerco de Lisboa (1989)
O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991)
Ensaio Sobre a Cegueira (1995)
A bagagem do viajante (1996)
Cadernos de Lanzarote (1997)
Todos os Nomes (1997)
A Caverna (2000)
O Homem Duplicado (2002)
Ensaio Sobre a Lucidez (2004)
As Intermitências da Morte (2005)
As pequenas memórias (2006)
A Viagem do Elefante (2008)
Caim (2009)

Poemas
Os Poemas Possíveis (1966)
Provavelmente Alegria (1970)
O Ano de 1993 (1975)

Poesias Existenciais
Palma com palma
Na Ilha por Vezes Habitada

Peças teatrais
A Noite (1979)
Que Farei com Este Livro? (1980)
A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987)
In Nomine Dei (1993)
Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido (2005)

Contos
Objeto Quase (1978)
Poética dos Cinco Sentidos - O Ouvido (1979)
O Conto da Ilha Desconhecida (1997)

Crônicas
Deste Mundo e do Outro (1971)
A Bagagem do Viajante (1973)
As Opiniões que o DL Teve (1974)
Os Apontamentos (1976)
Viagens a Portugal (1981)

Diário e Memórias
Cadernos de Lanzarote (I-V) (1994)
As Pequenas Memórias (2006)

Infantil
A Maior Flor do Mundo (2001)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Um genitor do mal

Odete Soares Rangel


Estou incrédula! Revoltada! Você como eu, talvez em muitas oportunidades, tenha se deparado com alguém na rua pedindo dinheiro. Esse fato sempre me deixa desconfortável, pois não sabemos se essa pessoa, realmente, é um carente.

Existem situações hilárias, para não dizer tristes! Tempos atrás encontrei um homem se é que assim pode-se chamá-lo, caminhando pela rua com um menino montado em seu pescoço. Interceptou-me e perguntou se eu sabia onde havia um centro espírita. Ao responder-lhe; apelou para o emocional disse que o menino estava doente, que precisava dinheiro para pagar as passagens e retornar para casa, que essas custariam R$ 12,00. Meio desconfiada, disse que poderia ajudar com R$ 2,00, ele tentou R$ 10,00 e eu dei-lhe apenas os dois reais. Naquele momento, já tinha quase certeza de que tratava-se de um vigarista.

Ontem, andando pelo centro de Florianópolis, deparei-me com esse verme utilizando os mesmos argumentos, a diferença foi que o reconheci e não caí nas suas artimanhas mais uma vez.

O que me deixa extremamente irritada é que essas pessoas sem escrúpulos usam crianças para extorquir dinheiro; inserem-as no mundo do crime, tornam-as refém da sua falta de vergonha e de caráter. E, em detrimento de formar um cidadão, formam um criminoso. Para esse tipo de pai, os filhos são, potencialmente, uma moeda de troca. Para os filhos, ter como pai um genitor do mal como esse, é uma tremenda decepção.


Parte dessa culpa é nossa, pois quando ajudamos criaturas como essa, contribuímos para que continuem agindo ilicitamente e nos tornamos suas vítimas. Assim; a partir de hoje, darei comida a quem tiver fome, água a quem tiver sede, mas dinheiro jamais! Faça o mesmo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Martin Luther King, Jr. e sua luta contra o preconceito e a injustiça

Odete Soares Rangel

http://pt.wikipedia.org/
Martin Luther King, Jr. é o primogênito do pastor batista Martin Luther King e de Alberta Williams. Ele nasceu em Atlanta, na Geórgia, Estados Unidos.

Em 1953, casou-se com a estudante de Musica Coretta Scott. O casal teve quatro filhos.
Ele frequentou escolas públicas que praticavam a segregação racial. Aluno inteligente, concluiu o colegial aos 15 anos de idade e a faculdade aos 19. No ano de 1951, formou-se em um Seminário Teológico. Em 1955, obteve seu doutorado em Teologia pela Universidade de Boston.

Em 1954, King assumiu o cargo de pastor na Igreja Batista da Dexter Avenue em Montgomery, no estado do Alabama. Era uma instituição negra que se constituía de um público politicamente consciente contrário à discriminação racial.

King é considerado um dos maiores líderes negros na história dos Estados Unidos e lutou pacificamente por um mundo mais justo e igualitário. Em 1963, ele e outros líderes negros organizaram a “Marcha para Washington”, cujo protesto tinha cerca de 200.000 pessoas. Na ocasião, ele fez seu mais importante discurso e gritou ao mundo que ele sonhava com uma nação que despertasse e aceitasse todos os homens como iguais, independente de seus credos, cor, físico, status. Ele sonhava que seus filhos pudessem ser julgados pelo seu caráter em detrimento da cor da sua pele. Suas palavras expressaram o desejo de todos os negros dos Estados Unidos que lutavam pelos mesmo ideais e elas ecoaram pelo mundo inteiro.

Nos Sul dos EUA, os negros sofriam constante discriminação racial, eram proibidos de entrar em determinados restaurantes e lugares públicos. Os filhos de pais negros não podiam frequentar as mesmas escolas e universidades dos brancos. A discriminação era tanta que um homem negro corria o risco de ser assassinado se dirigisse um olhar ou conversa a uma mulher branca. Eles, também, não tinham o direito a voto mesmo que tivesse cursado uma faculdade.

As leis de segregação racial determinavam que os passageiros negros somente podiam ocupar os assentos no fundo dos ônibus, bem como conceder seus lugares a passageiros brancos, caso o ônibus viesse a lotar. Não raramente, eram frequentemente humilhados e agredidos por racistas brancos.

Em 1∘ de Dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, no estado do Alabama, Rosa Parks, (líder da Associação Nacional de Avanço do Povo Negro), recusou-se a obedecer a ordem do motorista de um ônibus para ceder seu assento a um passageiro branco. Por essa decisão, ela foi detida e presa, o que gerou um boicote por parte da população negra, a qual recusou-se a utilizar os ônibus da cidade por um ano.

Foi como presidente da Associação para o Avanço de Montgomery que King iniciou sua luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e coordenou o boicote à lei de segregação no transporte público. Sua luta era pacífica, inspirada em Ghandi, para tanto visitou a Índia na década de 50 em busca de conhecimento sobre a atuação desse importante líder. Apesar dessa postura contra a discriminação racial, ele foi preso, sua família ameaçada de morte e sua casa destruída.

Após o incidente com Rosa Parks, um advogado impetrou um processo no tribunal federal contra a lei de segregação dos ônibus da cidade de Montgomery, cuja instituição decretou que a lei era inconstitucional. O governo apelou, mas a decisão foi mantida, ganhava-se a primeira batalha pelos direitos civis.

Em 1957, King liderava a organização da Conferencia da Liderança Cristã no Sul, buscava acabar com as leis de segregação e contou com o apoio, inclusive financeiro, dos brancos da região norte.

A partir de 1960, King mudou-se para Atlanta e passou a trabalhar como pastor juntamente com o pai. Mas logo, voltou a liderar uma série de protestos em diversas cidades norte-americanas, visando acabar com a segregação racial em hotéis, restaurantes e outros lugares públicos. Em uma dessas manifestações, ele foi preso sob a acusação de causar desordem pública. Enquanto esteve na prisão, King expressou, em carta, sua inconformidade pela punição de pessoas que lutavam contra o preconceito racial e leis injustas. Mesmo após ser libertado, ele nunca abandonou as manifestações em prol dos direitos civis de todos os cidadãos dos Estados Unidos.

Em 1964, o governo promulga a Lei dos Direitos Civis de 1964, a qual proibiu a segregação racial em locais públicos, empresas e escolas. Nesse mesmo ano, King recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

Em 1965, King obtém mais um sucesso, organizou uma marcha que resultou na aprovação da Lei dos Direitos de Voto de 1965 que abolia a realização de exames que visavam impedir os negros de votarem.

Em 4 de Abril de 1968, James Earl Ray, um franco atirador, assassina Martin Luther King, Jr. Na cidade de Memphis, Tennessee. Ele admitiu o crime e foi condenado a 99 anos de prisão.

Martin Luther King Jr. Contribuiu para o fim da segregação racial nos EUA e tornou-se um modelo de liderança e coragem; sua voz ecoará sempre nas nossas mentes e corações. Sem ele, essa luta teria sido uma página em branco.

É lamentável, porém, que preconceitos de gêneros diversos continuem acontecendo como vimos no caso de Susan Boyle, cantora escocesa, quando se apresentou no programa de calouros britânicos Britains´s Got Talent em 2009.

Ela foi olhada com desprezo pela sua aparência física e estética. Entretanto, após ouvirem-na cantar a musica I dreamed a dream do musical Os Miseráveis ela foi ovacionada pelos jurados e público em geral.

É bom lembrar como termina a letra dessa música Now life has killed the dream - I dreamed. Não se deve julgar para não ser julgado, vamos olhar as pessoas pelo que são, pelos valores e qualidades que elas possuem interiormente e não pelo aspecto aparente. Deixemos-nas sonharem e concretizarem seus sonhos, que Deus não permita que nossos preconceitos e nossa cegueira interrompam os sonhos dos nossos irmãos e iguais. Que existam e venham a público muitos Martins Luther King Jr e muitas Susans Boyle, cujos talentos e voz são inquestionáveis.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A memória

Odete Soares Rangel


Memória é uma palavra muito abrangente quando não delimitada, eis que pode possibilitar leituras diversas. Referindo-me a ela, posso falar de armazenamento de informações e imagens; de lembranças; de doenças mentais; de monumentos para comemorar os feitos de alguma pessoa ilustre, ou algum sucesso notável ou até mesmo de uma dissertação, na qual uma pessoa relate suas memórias, entre outras abordagens.

Meu foco é a memória como fonte de armazenamento de informações. Desde criança nós vivenciamos situações negativas e positivas que ficam gravadas na nossa memória para sempre. Passamos a vida inteira tentando esquecer as negativas e livrar-nos delas, mas certo dia sem que queiramos, elas voltam à mente, nos provocam, ativam nossas iras, lembram-nos dos nossos erros, nos fazem sentir culpados por algo. As coisas positivas nós guardamos na memória e no coração, fazemos questão de contar para as outras pessoas, pois são momentos de alegria que relembrados nos acalentam a alma e alimentam o espírito. Eu recordo com muita alegria minhas roupas de infância, minhas bonecas de pano, os pães especiais que minha mãe fazia para cada um de seus doze filhos, da nossa fazenda, da cachoeira, de andar a cavalo, da natureza exuberante, dos presentes de Páscoa, do dia das crianças, do Natal e Ano Novo, dos carinhos que eu recebia. Até dos castigos tenho saudades, pois eles me fizeram evoluir como ser humano. Em adulto não foi diferente, foram muitas conquistas no campo profissional ou pessoal, enfim vivi muitas emoções. Vivi muitos amores, viajei e estudei muito, desbravei espaços que eram quase impossíveis para uma mulher naquela época, todas essas coisas muito me orgulham e as retenho na memória. Mas, também, lembro de coisas tristes na fase adulta, as quais tento esquecer, mas elas sempre me assombram. Como a maioria dos poetas, minha vida é marcada pela morte: meus avós, meus tios, meus sobrinhos, meus pais, meus irmãos e muitos amigos. Isto sempre me faz sentir culpada, é como se eu tivesse falhado na minha missão por não tê-los salvo. Fico atônita quando olho para trás e penso que eu poderia ter agido diferente em determinadas situações, quão imatura eu me revelo hoje nas tomadas de decisões em algumas situações em épocas longínquas.

Enfim, não sou Deus; se eu falhei como ser humano, não posso me crucificar ou apagar essas vivências da minha memória. Esta é para nós o que queremos que ela seja, se quisermos viver bem hoje precisamos nos libertar do ontem. As pessoas não vivem de lembranças passadas, nem de expectativas futuras, mas sim de ações no presente. Minha memória é um composto de todas essas coisas sobre as quais discorri, mas eu estou feliz de tê-la e poder exercitá-la não só para armazenar as coisas do passado, mas também as do presente, ao passo que muitas pessoas, por inúmeras razões que não cabe aqui discutir, foram privadas dessa bênção.