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segunda-feira, 21 de junho de 2010

Desforra - José Saramago

Odete Soares Rangel


O conto, embora considerado por muitos como banal, é extremamente rico em imagens, metáforas, representações simbólicas, movimentos, metamorfoses, cujos ritos a natureza se encarrega de passar.


O rapaz vinha do rio. Nossa vida é composta de etapas evolutivas, cada uma dessas etapas pode ser considerada um rito de passagem, como, por exemplo, quando nascem os primeiros pelos da puberdade no rapaz.


O suor que escorria pelo pescoço representa o fluir através do movimento da água, o limo ainda gotejante é a criação, pois se reproduz nos lugares úmidos. Limo emergindo das águas simboliza vida, fertilidade, potencialidade. A inércia dele é o lado negativo. Na água turva tem-se o lado perverso, traiçoeiro, pois se pode afundar nesse terreno desconhecido de impureza, enlamear-se, e aqui não só no lodo efetivamente, mas numa metáfora de enegrecimento da imagem de uma pessoa.


No rio em movimento, na lama, no suor, nos fios de limos gotejantes temos a presença da água como fonte de vida, meio de purificação, o que remonta as mais antigas tradições. A água escorrendo verte a fertilidade, o movimento das bolhas de gás do lodo assemelha-se a respiração humana. Esse movimento da água e do ar representa passagens entre o interior (sagrado) e o exterior (o profano).


O barco como a vida é uma navegação perigosa, os remos originam as ações. A barca é uma segurança na travessia, também pode representar o corpo físico que serve de veículo para a alma.


A rã, olhos globulosos (globo-esfera), o círculo é o símbolo da eterna perfeição, representando a ressurreição, o fim do ciclo de uma vida está ligado ao nascimento, início de outro. A rã simboliza a metamorfose através das fases da sua vida, ela necessita adaptar-se as mudanças, pois em cada ciclo ela possui um corpo diferente adequado ao ambiente em que se encontra. A fertilidade dela simboliza as relações sexuais indiferenciadas porque ela é da água e da terra. Na pele branca da goela da rã, esse branco pode identificar uma das fases da sua vida, o branco para o ancião representa uma vontade de chegar ao celeste, também lembra-nos as vestimentas ritualísticas. O branco está presente na pintura da parede.


A ave azul no seu vôo rasante parece feliz e querer brincar ou testar os limites da água. O pássaro azul representa a esperança, símbolo da perfeição. Representação do azul há no próprio céu azul pela ausência de cor. Essa cor é pura e fria, mas representa a pureza, o equilíbrio, o vazio e a ausência. O azul claro é maravilhoso, inacessível. A ave azul simboliza passes da felicidade, era como se estivesse anunciando o encontro do rapaz e da rapariga, porém não há aproximação entre eles. A visão que eles têm, ambos em lados opostos do rio, lembra os contos infantis quando a donzela beija o sapo e vira príncipe.


O rapaz sobe a ladeira sem olhar para trás lembrando Sodoma e Gomorra e, também, Orfeu que não podia olhar para trás. Metálica, a cigarra lembra um instrumento musical, “roia o silêncio”, isto é subverte, quebra a harmonia.


O rito de passagem no fluir do rio através da sua nascente, sua trajetória sempre em movimento, e seu desembocar no mar pode ser comparado a esse mesmo percurso da vida, cuja morte do ser humano simboliza o retorno da alma ao céu.


As transformações se dão em vários momentos, como por exemplo, na areia calcinante que passa a ser um chão de barro que refrescava os pés. Os pés na lama podem significar a fertilidade do rapaz.


O porco é o símbolo das tendências obscuras, sob todas as suas formas, da influência, da gula, da luxúria e do egoísmo. O prazer sai da lama e das impurezas. Escreve São Clemente de Alexandria citando Heráclito “o porco tira o seu prazer do esterco”. O desespero do porco durante a castração mostra o seu protesto, as manchas do vermelho através da faca ensangüentada, da palha manchada, a presença do sangue vermelho, brilhante simbolizam a excitação, a transgressão, o cartão vermelho usado no futebol, além de ser o princípio da vida, o primeiro alimento do corpo. Aqui podemos referir-nos a obra “The scarlet letter” de Nathaniel Hawthorne em que numa comunidade Puritana, uma mulher comete adultério e é punida com o uso de uma letra A vermelha no peito simbolizando o seu pecado, através desse símbolo ela seria reconhecida e rejeitada por todos. 


A lama significa terra misturada com água, água turva – perversão. Esta pode conectar-se ao menino que está na fase da puberdade. Ela também simboliza matéria primordial e fecunda, da qual o homem, em especial, foi retirado segundo a tradição bíblica.


O rapaz no limiar da porta que é a fronteira do sagrado percebe a castração do animal que se alimenta da própria esterilidade, novamente um outro rito, cujo ciclo se fecha com o animal comendo partes do seu próprio corpo, sai dele e volta para ele. O rapaz volta para dentro bebe água que lhe escorre pelo corpo, sai de casa atravessa o olival, cujo retorno recupera toda a paisagem.


Percebe-se que a água perpassa todo o conto, a presença do rio é como se essa água movimentasse a própria história fazendo-na acontecer.


A imobilidade da rã e do rapaz num determinado momento pode significar o desejo de ambos, ela à espreita de um inseto para alimentar-se, ele espreitando a rapariga para satisfazer seu desejo, é como se o movimento, o ruído pudesse quebrar essa magia e afastar seus objetos de caça.


O despir do rapaz simboliza a nudez como o início da vida, o libertar-se de uma cegueira de si mesmo, despertando para uma nova fase, um novo e desengonçado corpo se revela, e com a nudez da mulher se dá a descoberta do outro (homem-mulher), ambos se descobrem na sua sensualidade e sensibilidade.


Novamente o rio tem um papel significativo na história, ele se confunde com o rapaz e a rapariga. O rio e o corpo assumem uma mesma imagem, líquido do interminável corpo (rio) e o corpo da rapariga. O rio é a travessia representada por uma necessidade de superar obstáculos; um outro estado da alma. O curso das águas é a corrente da vida.


Os círculos simbolizam os ciclos da vida: o diário em que cada dia acresce um elo nesse ciclo; o das estações do ano, o próprio ciclo anual dos doze meses, o das fases da vida, o das reencarnações. O mergulho e o efeito desse nado é como se o autor recortasse um instante desse quadro complexo dos ciclos que, também, podem ser concêntricos, mostrando o esforço gasto, o desgaste no viver essas várias fases que nem sempre são tão benéficas e prósperas. O rapaz volta na posição do rio. O rapaz está partindo e amadurece para uma nova fase da vida, o limiar entre a infância e a fertilidade, o porco está privado dessa.


Enfim, o autor explora as neuroses urbanas, a circularidade da vida rotineira, o mito circular, o homem moderno com seu ir e vir.

4 comentários:

Baltazar Gonçalves disse...

Sou leitor de Saramago e estava procurando esse conta na WEB, já li o livro. Gostei da sua análise e do conteúdo simbólico que o caminho seguido revelou em partes saborosas.

depoiseuconta.blogspot.com/

Odete Rangel disse...

Oi Baltazar,
Obrigada por visitar meu blog. Também por seu gentil comentário. Apesar do tempo decorrido, lembro que recorri ao dicionário de símbolos para realizar essa análise e gostei muito disso. Dá um sentido especial ao texto. E aprendemos muito numa pesquisa dessas.
Um grande abraço,

wedna Gama disse...

Muito bom..

Odete Rangel disse...

Bom dia Wedna Gama,

Obrigada por sua visita ao blog e comentário. Que bom que você gostou!

Seja sempre bem-vinda!

Abraços,