Odete Soares Rangel
A biografia foi transcrita da obra indicada na fonte. À exceção dos tremas que foram retirados, o restante da obra manteve a acentuação original, ainda que em descordo com as normas ortográficas atuais. Esta decisão levou em conta que estudantes e estudiosos do assunto, contarão com um texto riquíssimo para fazer uma análise da linguagem/ lexicografia. Algumas partes, quando as lemos, parecem constituir-se em erros, mas não são erros de digitação, fazem parte da construção original do texto à época.
O texto é longo, alguns podem achar cansativo, mas lhes garanto se for lido com entendimento, é muito interessante. E depois de ler a biografia, não deixe de ler Os Lusíadas, uma obra emocionante.
I
Nos primeiros meses de 1572, Mestre Antônio Gonçalves, impressor estabelecido com oficina própria à Costa do Castelo, em Lisboa, concluía a impressão de um longo poema em oitava rima (14), intitulado Os Lusíadas, no qual eram celebrados, por meio de alusões históricas e mitológicas de difícil compreensão, os feitos heróicos da gente portuguêsa na guerra como no mar. O poema fôra escrito por um certo Luís de Camões, autor pouco conhecido naqueles dias e certamente de escasso valimento, pois nem frequentava a Côrte nem estava subvencionado por qualquer fidalgo ilustre. Sabia-se apenas que lutara no ultramar, onde, numa escaramuça contra os mouros, tivera um dos olhos vazado, e que voltara à pátria alquebrado e pobre, indo então residir na Mouraria, em companhia de sua mãe, Dona Ana de Macedo.
Não é de estranhar o descaso com que Mestre Antônio tratava o autor do poema épico de cuja impressão se encarregara, talvez a instâncias do Padre Manuel Correia, examinador sinodal do Arcebispado de Lisboa. Como poderia êle advinhar que os séculos futuros haveriam de saudar aquelas estrofes de difícil sentido e que seu desimportante autor seria colocado, no rol dos imortais, ao lado de Dante, Cervantes, Petrarca e Shakespeare? Semelhantemente ao impressor da Costa do Castelo, os liteartos da época também pouca atenção deram ao Poeta, e quase tudo quanto hoje sabemos de sua vida atribulada, referta de tão cansado sofrimento, são algumas lacônicas notícias, que um ou outro de seus contemporâneos consentiu em excepcionalmente registrar para a posteridade.
A falta de informações pormenorizadas deu ensejo a que se entretecesse de lendas a biografia de Camões, lendas nas quais a vontade de exaltação não hesita em deliberadamente torcer as leis da verossimilhança. Visando a fazer do Poeta um modêlo de tôdas as virtudes, a maioria de seus biógrafos esforça-se por ocultar-lhe o possível plebeísmo de origem, inventando-lhe, em substituição, foros de alta fidalguia, como se sòmente a nobreza fôsse berço digno de um "cantor de Raça".
Ao traçar-lhe a árvore genealógica, os estudiosos da vida de Camões têm por hábito dar-lhe, como ascendente mais remoto, certo Vasco Peres de Camões, fidalgo pertencente a uma família galega fixada nos arredores da Finisterra. Tendo abandonado o torrão natal por questões de ordem política, Vasco Peres de Camões passou-se para Portugal em fins do século XIV, ali constituindo família e ali se fazendo soldado, cortesão e poeta. Um dos seus netos uniu-se pelo matrimônio à estirpe dos Gamas do Algarve, dando nascimento a Simão Vaz de Camões, pai do Poeta.
Nessa genealogia se percebe, desde logo, o desejo de exaltar Camões, dando-lhe um trisavô afidalgado e fazedor de trovas, e uma avó ligada à linhagem de Vasco da Gama, o navegante cujos feitos foram imortalizados nas estrofes sonoras dOs Lusíadas. A autenticidade de tal filiação é problemática:em todos os percalços de sua vida, que foram muitos, jamais teve Camões a mão de algum parente nobre interferindo por si, quer para salvá-lo das iras da lei, com a qual mais de uma feita se viu às voltas, quer para aliviar a vil miséria e dura que sempre lhe acompanhou os passos.
Outrossim, o sobrenome Camões já estava muito difundido em Portugal nos primórdios de século XVI. Famílias com êsse patronímico havia-as em Coimbra, Lisboa, Alenquer, Évora, Avis, etc., e, supôs-las tôdas entroncadas em Vasco Peres, que emigrara para Portugal apenas cento e cinquenta anos antes, é atribuir ao galhardo finisterrense, observa irônicamente Aquilino Ribeiro, "um patriarcado, êmulo de Abrão na prolificidade..." Prefere, antes, êste estudioso da vida e da obra do Poeta filiá-lo a um ramo menos nobre da frondosa árvore de Camões, ramo cuja fidalguia fôsse, quando muito, de meia-tigela.
Não se conhece com certeza nem o lugar nem a data de nascimento de Camões. Alguns biógrafos, interpretando-lhe ao pé da letra êste sonêto, dão-no como nascido em Alenquer.
No mundo poucos anos, e cansados,
Vivi, cheios de vil miséria e dura;
Vivi, cheios de vil miséria e dura;
Foi-me tão cedo a luz do
dia escura
Que não vi cinco lustros acabados.
Corri terras e mares
apartados,
Buscando à vida algum remédio ou cura;
Mas aquilo que, enfim,
não dá ventura,
Não o dão os trabalhos arriscados.
Criou-me
Portugal na verde e cara
Pátria minha Alenquer; mas ar corruto,
Que neste
meu terreno vaso tinha,
Me fêz manjar de peixes em ti, bruto
Mar, que
bates na Abássia fera e avara,
Tão longe da ditosa pátria minha!
A se aceitar como verídica a declaração do Poeta de ter sido Alenquer a verde e cara Pátria sua, vale dizer, sua cidade natal, haveria que aceitar igualmente como verídica a outra afirmativa do sonêto: a de Camões ter falecido antes de completar vinte e cinco anos (Que não vi cinco lustros acabados), afogado nos mares da Abissínia (manjar de peixes em ti, bruto/Mar, que bates a Abássia fera e avara); afirmativa essa absurda.
Apoiando-se em vários outros passos, de igualmente duvidosa interpretação, da obra do Poeta, certos biógrafos acreditam-no nascido em Santarém. Alguns fazem fé na declaração de Domingos Fernandes, livreiro da Universidade de Coimbra, que, ao publicar em 1607 uma edição das Rimas de Camões, escreveu no prefácio do livro: "...nascendo êle, nessa vossa cidade de Coimbra, a vosso peito como Mãe natural o criastes tantos anos; com vossas doutrinas o ensinastes alguns, e com vossos louvores, como fiel amigo, o honrastes tantas vezes". Todavia, tal declaração tem sido interpretada mais como expediente de editor buscando lisonjear o bairrismo de seus eventuais fregueses, qye fato provado.
Atualmente, a maioria dos camonistas inclina-se a aceitar Lisboa como berço natal do Poeta, tendo em vista não apenas testemunhos mais ou menos fidedignos de contemporâneos seus, como as invocações por êle feitas às Tágides, divindades fluviais criadas pela sua fantasia de lisboeta nato que, vendo o Tejo como pátrio rio, exaltava-lhe miticamente as sobrenaturais virtudes inspiradoras.
A data exata do nascimento de Camões tem sido também objeto de polêmica. Sabe-se com razoável certeza, ter êle nascido no terceiro decênio do século XVI; chegou-se inclusive a tomar, algo arbitràriamente, o ano de 1524. Tal ano é particularmente significativo, pois nêle faleceu Vasco da Gama, o protagonista principal dOs Lusíadas, e nasceu Pierre de Ronsard;poeta que exe, na Literatura Francesa, papael semelhante ao de Camões na portuguêsa, ao amalgamar, numa obra de alta significação estética, o petrarquismo de cunho clássico e a tradição medieval autóctone.
Da infância de Camões nada se sabe. Teria sido, muito provàlvemente, uma infância cheia de penúria e de tristeza. Já nos começos do século XVI, Lisboa exibia os primeiros sintomas daquele acelerado processo de decadência que corroía os alicerces de uma organização social imprevidente, fundada no luxo e na indolência das conquistas fáceis. Afora uma Côrte de parasitas, cujo fausto era subvencionado pelos dia a dia menos generosos proventos da exploração colonial, e de uma burguesia mercantil enriquecida com as especiarias do Oriente, o restante da´população lisboeta vivia uma existência de privações. As pestes e a miragem do enriquecimento rápido em terras de África e Ásia haviam despovoado o Reino; faltos de braços que os cultivassem, jaziam os campos abandonados; os gênerosde primeira necessidade escasseavam, fazendo-se cada vez menos acessíveis à bôlsa do pobre.
Pobre deveria ter sido Simão Vaz de Camões, ou não houvera desamparado esposa e filho, partindo para as Índias em busca de miríficas riquezas. Sem as ter conquistado, morreu inglòriamente, em Goa; com o natural ressentimento dos órfãos, viu o menino Luís sua mãe contrair novas núpcias, e um estranho assumir, no lar humilde, os deveres e as prerrogativas do falecido Simão Vaz.
II
Tendo em conta a grande erudição de que Camões dá mostras na sua obra, muitos estudiosos foram levados a acreditar tivesse-a êle adquirido nos bancos da Universidade de Coimbra, centro intelectual do Reino e ufanamente exaltada, na época, como uma "segunda Atenas".
Pela amplitude, sua erudição era, de fato, a típica de um letrado da Renascença. Conhecia profundamente a Literatura Clássica de Grécia e Roma; lia Latim com desembaraço, sabia Italiano (alguns dos seus sonetos são traduções, por vêzes superiores ao original, de composições de Petrarca) e escrevia o Castelhano com elegância. Não parece, contudo, ter conhecido Grego, tôdas as divindades da mitologia helênica citadas em seus versos aparecem com nomes latinos. Fôsse Camões versado no idioma de Homero, e não deixaria de valer-se da rica sinonímia de que o Grego dispõe
para designar os deuses do Olimpo.
Atentando para o fato de os pais do Poeta terem sido gente sem recursos, crê Aquilino Ribeiro, em desacordo com a opinião da maioria, que Camões fizesse sua educação intelectual em Lisboa mesmo, frequentando as aulas que dominicanos e jesuítas mantinham, nos seus respectivos claustros, em benefício de quantos não dispusessem de meios para estudar em Coimbra. Convém lembrar, de passagem, que naquela época, o estudo das Humanidades era ocupação mais de plebeus que de nobres. A êstes estava de preferência reservada a carreira das armas, o aprendizado das artes fidalgas - equitação, esgrima, caça. Tanto assim que Frei Luis de Sousa, escrupuloso cronista do quinhentismo português, não se esquecia de anotar nos seus anais d'El-Rei D. João III:"Davam-se aquêle tempo todos os nobres tanto às armas e tão pouco às letras, como se fôsse verdade que a pena embotasse a lança."
É bem de ver que as aulas lisboetas, não teriam fornecido ao Poeta todo aquêle cabedal de erudição testemunhado em seus versos. Mas, homem de gênio, não é descabido pensar haja suprido, por meio de aturado e laborioso autodidatismo, as deficiências do aprendizado escolar. De autodidatismo não faltam exemplos na História: muitos homens eminentes educaram-se, não do bulício das universidades, mas no silêncio das mansardas.
Que tipo de vida teria levado o jovem Camões em Lisboa? Os partidários de sua origem fidalga apresentam-no como frequentador assíduo do Paço, até onde teria sido levado por amigos ilustres, possìvelmente por aquêle malogrado D. Antônio de Noronha, cuja morte prematura mais tarde prantearia num sonêto e numa écloga. NO Paço, o Poeta teria conhecido Dona Catarina de Ataíde, Dama da Rainha, pela qual se apaixonou perdidamente, e a quem imortalizou, sob o anagrama de Natércia, na sua lírica. José Maria Rodrigues chega mesmo a aventar a hipótese arrojada de Camões haver se enamorado da própria Infanta D. Maria(15), que lhe inspiraria alguns dos seus mais finos versos amorosos.
Êste capítulo dos amôres de Camões é campo fértil de controvérsias. De positivo, nada se sabe a respeito, e as musas palacianas que lhe têm sido atribuídas, não passam, segundo parece, de invenção de biógrafos imaginosos, esquecidos daquele cauteloso alvitre proposto por Aubrey Bell: o de, na qualidade de aluno da escola petrarquista, haver Camões idealizado "uma ou mais criaturas femininas, fazendo-lhes versos, como se morresse de paixão por elas, cantando-as como se fôssem senhoras do seu coração, mas só com a mira de dar forma literária a impressões que não sentia".
Mais consentâneo com fatos estabelecidos da vida do Poeta será supor 'haja êle frequentado, não a companhia de fidalgos e damas de prol, mas a dos arruaceiros e loureiras que enxameavam as tabernas de Lisboa, tendo-se entregue ali a tôda sorte de tropelias e amôres fáceis condizentes com o seu temperamento arrebatado e sensual.
Foram essas tropelias, certamente, que deram causa ao seu destêrro de Lisboa por volta de 1548. Pensou-se, a princípio, que o destêrro fôra provocado pela representação do seu auto El-Rei Seleuco, inspirado em autores clássicos, no qual é narrada a história de um rei que cede a própria espôsa ao filho, enteado dela e dela enamorado. Haveria, pois, na peça uma alusão tortuosa e ferina ao casamento de d'El-Rei D. Manuel com a noiva originalmente destinada ao filho, e tal alusão não teria passado despercebida dos ofendidos, que puniram o atrevimento do jovem tatrólogo banindo-o de Lisboa. Mas como El-Rei Seleuco foi levado à cena em casa de um oficial da Côrte, é difícil admitir houvesse nêle qualquer ofensa intencional contra o trono (16).
Exilado de Lisboa, Camões, subindo o Tejo, dirigiu-se, sem vintém nem esperanças, para o Ribatejo, onde amigos mais afortunados o acolheram e lhe deram cama e comida. Todavia, a êsse viver de favores, preferiu o Poeta os perigos e desconfortos do serviço militar na África. Depois de seis meses de permanência na província, requereu alistamento na milícia do Ultramar e, uma vez aceito, embarcou para Ceuta no outono de 1549.
III
Em Ceuta, viveu Camões, durante dois anos, a vida cheia de perigos e privações do soldado raso. E foi em África que perdeu o ôlho direito, no curso de uma daquelas frequentes escaramuças travadas pelos portuguêses contra os mouros inimigos de Cristo e seguidores de Mafoma.
Essa existência de peregrino vago, errante/Vendo nações, linguagens e costumes/Céus vários, qualidades diferentes, acabou transformando o estudante turbulento num homem amargo e desiludido. O Camões desembarcado em Lisboa por volta de 1551 era bem diversos do que dali partira dois anos antes. Embora voltasse para a companhia dos boêmios do Mal-Cozinhando, taverna de má-fama, e granjeasse, pelas suas proezas de folgazão briguento, o epíteto de Trinca-Fortes, naõ mais o animava a juvenil sofreguidão de outrora. Na vadiagem e na devasidão, buscava o Poeta tão-sòmente, agora, afogar suas mágoas de vencido.
Como era de esperar, nova desgraça, forjada por aquêle seu implacável e duro Gênio de vinganças, veio agravar-lhe ainda mais a miséria física e moral. Em 1552, no dia de Corpus Christi, dois mascarados engalfinharam-se no Largo do Rossio com um xerto Gonçalo Borges, obscuro oficial da Côrte. Reconhecendo os mascarados amigos seus, Camões, que por ali passava , resolveu entrar na briga e acabou ferindo Gonçalo Borges no pescoço. A vítima foi queixar-se à justiça d'El-Rei, e esta deteve o Poeta, encarcerando-o no Tronco, a esquálida prisão de Lisboa. Nenhum daqueles supostos amigos afidalgados que muitos biógrafos amam atribuir-lhe , veio em socorro dêle, e, não fôssem as lágrimas amargas com que Ana de Macedo provàvelmente banhou os pés de Gonçalo Borges e dos ministros reais, Camões teria ficado a mofar indefinidamente nas masmorras do Tronco.
Em fevereiro de 1553, restabelecido do ferimento, Gonçalo Borges perdoava ao agressor e a êste era concedida carta formal de perdão. O Poeta seria libertado sob duas condições: primeira, a de pagar ao Esmoler d'El-Rei, para obras de caridade, a multa de quatro mil réis, um dinheirão naquele tempo; segunda, a de embarcar para a Índia, a fim de servir na milícia do Oriente.
Paga a multa - e, para pagá-la, D. Ana de macedo teve possìvelmente de empenhar suas últimas jóias, - Camões embarcou a 26 de março de 1553, na são Bento, nau incorporada à frota comandada pelo capitão Fernão Álvares Cabral. Ia, na qualidade de soldado raso, cumprir três anos de serviço militar no Oriente. No seu coração não havia, porém, nem sêde de aventuras nem esperança de glória, mas apenas ressentimento contra os fados adversos que o impeliam a sangrentas emprêsas de guerra, quando seu gênio estava talhado para a Poesia.
IV
Seis meses ,ais tarde, a frota de Fernão Álvares Cabral aportava em Goa. A capital da Índia Portuguêsa era, então, uma cidade pitoresca, caótica, variegada, dissoluta. Livre dos freios da Lei e da Religião, tão apertados no Reino, mas benignos e frouxos no Ultramar, o emigrado português, mal punha os pés em terra indiana, deixava-se embriagar pelos perfumes capitosos daquele arremêdo de civilização européia, dominado pelo luxo e pela lascívia.Ao Poeta exilado da Pátria, êsse espetáculo de desagregação moral inspirou funda repulsa. Repulsa extravasada num sonêto amargo, em que a Goa lusitana é comparada à Babilônia bíblica:
Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria,
Cá donde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
Cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;
v
Cá, neste labirinto, onde a nobreza,
Com esforço e saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza;
Cá, neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da Natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
Poucas semanas depois de arribado ao escuro caos da confusão, Camões participava de uma expedição punitiva que o Vice-Rei D. Afonso de Noronha enviou contra o rei de Chemba, na costa do Malabar. Vitoriosa, logo regressou a expedição a Goa, mas o Poeta não teve muito tempo para descansar, pois já em fevereiro de 1554 estava engajado na frota que, sob o comado de D. Fernando de Menezes, partiu de Goa demandando o estreito de Meca, em perseguição a navios mercantes mouros que comerciavam entre a Índia e o Egito, prejudicando dessarte o monopólio mercantil dos portuguêses. A frota so voltou à Índia em novembro do mesmo ano.
Tendo assim cumprido seus primeiros seis meses de serviço, Camões fazia jus a um período de licença. Entretanto, como, durante tais férias compulsórias, os soldados alistados não recebessem sôldo, viu-se o Poeta obrigado a arranjar algum serviço para não morrer de fome. Pelo que deixa entrever numa carta escrita da Índia a amigos de Lisboa, tornou-se, nos intervalos da vida militar, escriba público: ganhava uns magros tostões adicionais rabiscando cartas para os muitos colonos analfabetos que da Colônia desejavam
comunicar-se com seus familiares do Reino. Graças ao mesquino sôldo regular e a êsses tostões adicionais, conseguiu Camões manter-se em Goa até 1556, escrevendo, nas horas livres, alguns dos seus melhores poemas de índole autobiográfica e, talvez, os primeiros cantos dOs Lusíadas.
Depois de haver o Poeta cumprido o estágio obrigatório de três anos na milícia do Oriente, o então governador Francisco Barreto nomeou-o para o cargo de provedor-mor dos defuntos e ausentes (17) em Macau, entreposto comercial dos portuguêses na China.
Sua estada em Macau ficou imortalizada por uma lenda: ainda hoje existe nas proximidades daquela cidade uma estreita gruta conhecida pelo nome de Gruta de Camões onde, segundo reza a tradição, o Poeta escreveu a maior parte dOs Lusíadas. Entretanto, o cargo de provedor-mor não lhe durou muito tempo; acusado, por colonos portuguêses, de haver-se apropriado de dinheiros alheios a si confiados, Camões foi chamado a Goa para responder o inquérito judicial. Na viagem de volta, o navio em que vinha aprisionado naufragou nas costas de Camboja, próximo do rio Mecom. O Poeta conseguiu salvar-se a nado, levando consigo, único pertence, o precioso manuscrito dOs Lusíadas; viveu em companhia de monges budistas estabelecidos nas imediações do Mecom, até ser recolhido por um navio português que o levou até Goa.
Em Goa, viveu, durante vários anos, vida atribulada e difícil, marcado que estava pelo labéu de estelionatário. Parece ter sido prêso mais de uma vez,não apenas pelas supostas irregularidades de provedor-mor, como também por dívidas não saldadas. Um dos seus mais empedernidos credores, Miguel Roiz, alcunhado de Fios-Secos pelas habilidades de espadachim, requereu-lhe a prisão e, do cárcere, o Poeta invocou os bons ofícios do Conde de Redondo, estão vice-rei da Índia Portuguêsa, nuns versos humorísticos escritos por volta de 1562. O vice-rei não fêz ouvidos moucos às suas súplicas:concedeu-lhe a liberdade pedida e distinguiu-o, daí por diante, com a sua proteção.
Data dêsses anos difíceis em Goa o episódio pitoresco do banquete oferecido pelo Poeta a alguns amigos. Banquete no qual, celebrando de forma jocosa a miséria em que vivia, serviu aos convivas, não as iguarias esperadas, mas trovas escritas em pedacinhos de papel colocadas sob os pratos vazios. Uma dessas trovas dizia:
A se aceitar como verídica a declaração do Poeta de ter sido Alenquer a verde e cara Pátria sua, vale dizer, sua cidade natal, haveria que aceitar igualmente como verídica a outra afirmativa do sonêto: a de Camões ter falecido antes de completar vinte e cinco anos (Que não vi cinco lustros acabados), afogado nos mares da Abissínia (manjar de peixes em ti, bruto/Mar, que bates a Abássia fera e avara); afirmativa essa absurda.
Apoiando-se em vários outros passos, de igualmente duvidosa interpretação, da obra do Poeta, certos biógrafos acreditam-no nascido em Santarém. Alguns fazem fé na declaração de Domingos Fernandes, livreiro da Universidade de Coimbra, que, ao publicar em 1607 uma edição das Rimas de Camões, escreveu no prefácio do livro: "...nascendo êle, nessa vossa cidade de Coimbra, a vosso peito como Mãe natural o criastes tantos anos; com vossas doutrinas o ensinastes alguns, e com vossos louvores, como fiel amigo, o honrastes tantas vezes". Todavia, tal declaração tem sido interpretada mais como expediente de editor buscando lisonjear o bairrismo de seus eventuais fregueses, qye fato provado.
Atualmente, a maioria dos camonistas inclina-se a aceitar Lisboa como berço natal do Poeta, tendo em vista não apenas testemunhos mais ou menos fidedignos de contemporâneos seus, como as invocações por êle feitas às Tágides, divindades fluviais criadas pela sua fantasia de lisboeta nato que, vendo o Tejo como pátrio rio, exaltava-lhe miticamente as sobrenaturais virtudes inspiradoras.
A data exata do nascimento de Camões tem sido também objeto de polêmica. Sabe-se com razoável certeza, ter êle nascido no terceiro decênio do século XVI; chegou-se inclusive a tomar, algo arbitràriamente, o ano de 1524. Tal ano é particularmente significativo, pois nêle faleceu Vasco da Gama, o protagonista principal dOs Lusíadas, e nasceu Pierre de Ronsard;poeta que exe, na Literatura Francesa, papael semelhante ao de Camões na portuguêsa, ao amalgamar, numa obra de alta significação estética, o petrarquismo de cunho clássico e a tradição medieval autóctone.
Da infância de Camões nada se sabe. Teria sido, muito provàlvemente, uma infância cheia de penúria e de tristeza. Já nos começos do século XVI, Lisboa exibia os primeiros sintomas daquele acelerado processo de decadência que corroía os alicerces de uma organização social imprevidente, fundada no luxo e na indolência das conquistas fáceis. Afora uma Côrte de parasitas, cujo fausto era subvencionado pelos dia a dia menos generosos proventos da exploração colonial, e de uma burguesia mercantil enriquecida com as especiarias do Oriente, o restante da´população lisboeta vivia uma existência de privações. As pestes e a miragem do enriquecimento rápido em terras de África e Ásia haviam despovoado o Reino; faltos de braços que os cultivassem, jaziam os campos abandonados; os gênerosde primeira necessidade escasseavam, fazendo-se cada vez menos acessíveis à bôlsa do pobre.
Pobre deveria ter sido Simão Vaz de Camões, ou não houvera desamparado esposa e filho, partindo para as Índias em busca de miríficas riquezas. Sem as ter conquistado, morreu inglòriamente, em Goa; com o natural ressentimento dos órfãos, viu o menino Luís sua mãe contrair novas núpcias, e um estranho assumir, no lar humilde, os deveres e as prerrogativas do falecido Simão Vaz.
II
Tendo em conta a grande erudição de que Camões dá mostras na sua obra, muitos estudiosos foram levados a acreditar tivesse-a êle adquirido nos bancos da Universidade de Coimbra, centro intelectual do Reino e ufanamente exaltada, na época, como uma "segunda Atenas".
Pela amplitude, sua erudição era, de fato, a típica de um letrado da Renascença. Conhecia profundamente a Literatura Clássica de Grécia e Roma; lia Latim com desembaraço, sabia Italiano (alguns dos seus sonetos são traduções, por vêzes superiores ao original, de composições de Petrarca) e escrevia o Castelhano com elegância. Não parece, contudo, ter conhecido Grego, tôdas as divindades da mitologia helênica citadas em seus versos aparecem com nomes latinos. Fôsse Camões versado no idioma de Homero, e não deixaria de valer-se da rica sinonímia de que o Grego dispõe
para designar os deuses do Olimpo.
Atentando para o fato de os pais do Poeta terem sido gente sem recursos, crê Aquilino Ribeiro, em desacordo com a opinião da maioria, que Camões fizesse sua educação intelectual em Lisboa mesmo, frequentando as aulas que dominicanos e jesuítas mantinham, nos seus respectivos claustros, em benefício de quantos não dispusessem de meios para estudar em Coimbra. Convém lembrar, de passagem, que naquela época, o estudo das Humanidades era ocupação mais de plebeus que de nobres. A êstes estava de preferência reservada a carreira das armas, o aprendizado das artes fidalgas - equitação, esgrima, caça. Tanto assim que Frei Luis de Sousa, escrupuloso cronista do quinhentismo português, não se esquecia de anotar nos seus anais d'El-Rei D. João III:"Davam-se aquêle tempo todos os nobres tanto às armas e tão pouco às letras, como se fôsse verdade que a pena embotasse a lança."
É bem de ver que as aulas lisboetas, não teriam fornecido ao Poeta todo aquêle cabedal de erudição testemunhado em seus versos. Mas, homem de gênio, não é descabido pensar haja suprido, por meio de aturado e laborioso autodidatismo, as deficiências do aprendizado escolar. De autodidatismo não faltam exemplos na História: muitos homens eminentes educaram-se, não do bulício das universidades, mas no silêncio das mansardas.
Que tipo de vida teria levado o jovem Camões em Lisboa? Os partidários de sua origem fidalga apresentam-no como frequentador assíduo do Paço, até onde teria sido levado por amigos ilustres, possìvelmente por aquêle malogrado D. Antônio de Noronha, cuja morte prematura mais tarde prantearia num sonêto e numa écloga. NO Paço, o Poeta teria conhecido Dona Catarina de Ataíde, Dama da Rainha, pela qual se apaixonou perdidamente, e a quem imortalizou, sob o anagrama de Natércia, na sua lírica. José Maria Rodrigues chega mesmo a aventar a hipótese arrojada de Camões haver se enamorado da própria Infanta D. Maria(15), que lhe inspiraria alguns dos seus mais finos versos amorosos.
Êste capítulo dos amôres de Camões é campo fértil de controvérsias. De positivo, nada se sabe a respeito, e as musas palacianas que lhe têm sido atribuídas, não passam, segundo parece, de invenção de biógrafos imaginosos, esquecidos daquele cauteloso alvitre proposto por Aubrey Bell: o de, na qualidade de aluno da escola petrarquista, haver Camões idealizado "uma ou mais criaturas femininas, fazendo-lhes versos, como se morresse de paixão por elas, cantando-as como se fôssem senhoras do seu coração, mas só com a mira de dar forma literária a impressões que não sentia".
Mais consentâneo com fatos estabelecidos da vida do Poeta será supor 'haja êle frequentado, não a companhia de fidalgos e damas de prol, mas a dos arruaceiros e loureiras que enxameavam as tabernas de Lisboa, tendo-se entregue ali a tôda sorte de tropelias e amôres fáceis condizentes com o seu temperamento arrebatado e sensual.
Foram essas tropelias, certamente, que deram causa ao seu destêrro de Lisboa por volta de 1548. Pensou-se, a princípio, que o destêrro fôra provocado pela representação do seu auto El-Rei Seleuco, inspirado em autores clássicos, no qual é narrada a história de um rei que cede a própria espôsa ao filho, enteado dela e dela enamorado. Haveria, pois, na peça uma alusão tortuosa e ferina ao casamento de d'El-Rei D. Manuel com a noiva originalmente destinada ao filho, e tal alusão não teria passado despercebida dos ofendidos, que puniram o atrevimento do jovem tatrólogo banindo-o de Lisboa. Mas como El-Rei Seleuco foi levado à cena em casa de um oficial da Côrte, é difícil admitir houvesse nêle qualquer ofensa intencional contra o trono (16).
Exilado de Lisboa, Camões, subindo o Tejo, dirigiu-se, sem vintém nem esperanças, para o Ribatejo, onde amigos mais afortunados o acolheram e lhe deram cama e comida. Todavia, a êsse viver de favores, preferiu o Poeta os perigos e desconfortos do serviço militar na África. Depois de seis meses de permanência na província, requereu alistamento na milícia do Ultramar e, uma vez aceito, embarcou para Ceuta no outono de 1549.
III
Em Ceuta, viveu Camões, durante dois anos, a vida cheia de perigos e privações do soldado raso. E foi em África que perdeu o ôlho direito, no curso de uma daquelas frequentes escaramuças travadas pelos portuguêses contra os mouros inimigos de Cristo e seguidores de Mafoma.
Essa existência de peregrino vago, errante/Vendo nações, linguagens e costumes/Céus vários, qualidades diferentes, acabou transformando o estudante turbulento num homem amargo e desiludido. O Camões desembarcado em Lisboa por volta de 1551 era bem diversos do que dali partira dois anos antes. Embora voltasse para a companhia dos boêmios do Mal-Cozinhando, taverna de má-fama, e granjeasse, pelas suas proezas de folgazão briguento, o epíteto de Trinca-Fortes, naõ mais o animava a juvenil sofreguidão de outrora. Na vadiagem e na devasidão, buscava o Poeta tão-sòmente, agora, afogar suas mágoas de vencido.
Como era de esperar, nova desgraça, forjada por aquêle seu implacável e duro Gênio de vinganças, veio agravar-lhe ainda mais a miséria física e moral. Em 1552, no dia de Corpus Christi, dois mascarados engalfinharam-se no Largo do Rossio com um xerto Gonçalo Borges, obscuro oficial da Côrte. Reconhecendo os mascarados amigos seus, Camões, que por ali passava , resolveu entrar na briga e acabou ferindo Gonçalo Borges no pescoço. A vítima foi queixar-se à justiça d'El-Rei, e esta deteve o Poeta, encarcerando-o no Tronco, a esquálida prisão de Lisboa. Nenhum daqueles supostos amigos afidalgados que muitos biógrafos amam atribuir-lhe , veio em socorro dêle, e, não fôssem as lágrimas amargas com que Ana de Macedo provàvelmente banhou os pés de Gonçalo Borges e dos ministros reais, Camões teria ficado a mofar indefinidamente nas masmorras do Tronco.
Em fevereiro de 1553, restabelecido do ferimento, Gonçalo Borges perdoava ao agressor e a êste era concedida carta formal de perdão. O Poeta seria libertado sob duas condições: primeira, a de pagar ao Esmoler d'El-Rei, para obras de caridade, a multa de quatro mil réis, um dinheirão naquele tempo; segunda, a de embarcar para a Índia, a fim de servir na milícia do Oriente.
Paga a multa - e, para pagá-la, D. Ana de macedo teve possìvelmente de empenhar suas últimas jóias, - Camões embarcou a 26 de março de 1553, na são Bento, nau incorporada à frota comandada pelo capitão Fernão Álvares Cabral. Ia, na qualidade de soldado raso, cumprir três anos de serviço militar no Oriente. No seu coração não havia, porém, nem sêde de aventuras nem esperança de glória, mas apenas ressentimento contra os fados adversos que o impeliam a sangrentas emprêsas de guerra, quando seu gênio estava talhado para a Poesia.
IV
Seis meses ,ais tarde, a frota de Fernão Álvares Cabral aportava em Goa. A capital da Índia Portuguêsa era, então, uma cidade pitoresca, caótica, variegada, dissoluta. Livre dos freios da Lei e da Religião, tão apertados no Reino, mas benignos e frouxos no Ultramar, o emigrado português, mal punha os pés em terra indiana, deixava-se embriagar pelos perfumes capitosos daquele arremêdo de civilização européia, dominado pelo luxo e pela lascívia.Ao Poeta exilado da Pátria, êsse espetáculo de desagregação moral inspirou funda repulsa. Repulsa extravasada num sonêto amargo, em que a Goa lusitana é comparada à Babilônia bíblica:
Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria,
Cá donde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
Cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;
v
Cá, neste labirinto, onde a nobreza,
Com esforço e saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza;
Cá, neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da Natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
Poucas semanas depois de arribado ao escuro caos da confusão, Camões participava de uma expedição punitiva que o Vice-Rei D. Afonso de Noronha enviou contra o rei de Chemba, na costa do Malabar. Vitoriosa, logo regressou a expedição a Goa, mas o Poeta não teve muito tempo para descansar, pois já em fevereiro de 1554 estava engajado na frota que, sob o comado de D. Fernando de Menezes, partiu de Goa demandando o estreito de Meca, em perseguição a navios mercantes mouros que comerciavam entre a Índia e o Egito, prejudicando dessarte o monopólio mercantil dos portuguêses. A frota so voltou à Índia em novembro do mesmo ano.
Tendo assim cumprido seus primeiros seis meses de serviço, Camões fazia jus a um período de licença. Entretanto, como, durante tais férias compulsórias, os soldados alistados não recebessem sôldo, viu-se o Poeta obrigado a arranjar algum serviço para não morrer de fome. Pelo que deixa entrever numa carta escrita da Índia a amigos de Lisboa, tornou-se, nos intervalos da vida militar, escriba público: ganhava uns magros tostões adicionais rabiscando cartas para os muitos colonos analfabetos que da Colônia desejavam
comunicar-se com seus familiares do Reino. Graças ao mesquino sôldo regular e a êsses tostões adicionais, conseguiu Camões manter-se em Goa até 1556, escrevendo, nas horas livres, alguns dos seus melhores poemas de índole autobiográfica e, talvez, os primeiros cantos dOs Lusíadas.
Depois de haver o Poeta cumprido o estágio obrigatório de três anos na milícia do Oriente, o então governador Francisco Barreto nomeou-o para o cargo de provedor-mor dos defuntos e ausentes (17) em Macau, entreposto comercial dos portuguêses na China.
Sua estada em Macau ficou imortalizada por uma lenda: ainda hoje existe nas proximidades daquela cidade uma estreita gruta conhecida pelo nome de Gruta de Camões onde, segundo reza a tradição, o Poeta escreveu a maior parte dOs Lusíadas. Entretanto, o cargo de provedor-mor não lhe durou muito tempo; acusado, por colonos portuguêses, de haver-se apropriado de dinheiros alheios a si confiados, Camões foi chamado a Goa para responder o inquérito judicial. Na viagem de volta, o navio em que vinha aprisionado naufragou nas costas de Camboja, próximo do rio Mecom. O Poeta conseguiu salvar-se a nado, levando consigo, único pertence, o precioso manuscrito dOs Lusíadas; viveu em companhia de monges budistas estabelecidos nas imediações do Mecom, até ser recolhido por um navio português que o levou até Goa.
Em Goa, viveu, durante vários anos, vida atribulada e difícil, marcado que estava pelo labéu de estelionatário. Parece ter sido prêso mais de uma vez,não apenas pelas supostas irregularidades de provedor-mor, como também por dívidas não saldadas. Um dos seus mais empedernidos credores, Miguel Roiz, alcunhado de Fios-Secos pelas habilidades de espadachim, requereu-lhe a prisão e, do cárcere, o Poeta invocou os bons ofícios do Conde de Redondo, estão vice-rei da Índia Portuguêsa, nuns versos humorísticos escritos por volta de 1562. O vice-rei não fêz ouvidos moucos às suas súplicas:concedeu-lhe a liberdade pedida e distinguiu-o, daí por diante, com a sua proteção.
Data dêsses anos difíceis em Goa o episódio pitoresco do banquete oferecido pelo Poeta a alguns amigos. Banquete no qual, celebrando de forma jocosa a miséria em que vivia, serviu aos convivas, não as iguarias esperadas, mas trovas escritas em pedacinhos de papel colocadas sob os pratos vazios. Uma dessas trovas dizia:
Heliogábalo
zombava
Das pessoas convidadas,
E de sorte as enganava
Que as iguarias que dava
Vinham nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
Pois já não pode ser nova;
Que a ceia está segura
De não vos vir em pintura,
Mas há de vir tôda em trova.
Por volta de 1567, Camões conheceun um certo capitão Pero Barreto que, de partida para Safala, se ofereceu para levá-lo até Moçambique. Chegados a Moçambique, desaveio-se Pero Barreto com o Poeta, por questões de dívidas, e mandou prendê-lo. Em fins de 1569, de passagem por aquela colônia portuguêsa, o historiador Diogo do Couto ali encontrou Camões na mais negra miséria, vivendo do favor de amigos. O encontro vem narrado numa das Décadas do historiador: "Em Moçambique achamos aquêle príncipe dos poetas do seu tempo, meu matalote e amigo, Luís de camões, tão pobre que comia de amigos. E para se embarcar para o Reino lhe ajuntamos os amigos a roupa que houve mister, e não faltou quem lhe desse de comer. E aquêle inverno que estêve em Moçambique acabou de aperfeiçoar as suas Lusíadas para as imprimir, e foi escrevendo muito em um livro que ia fazendo, que intitulava Parnaso de Luís de camões, livro de muita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhe furtaram. E nunca pude saber no Reino dêle, por muito que inquiri. E foi furto notável. E em Portugal morreu êste excelente poeta em pura pobreza." Graças ao auxílio de Diogo do Couto, pôde Camões deixar Moçambique, embarcado na nau Santa Clara, que chegou a Lisboa em abril de 1570. Apesar de suas muitas andanças pelo Ultramar, voltava a Pátria quase tão pobre como quando dali partira. Quase, porquê, além de um escravo javanês comprado em Moçambique, trazia consigo a única fortuna que lograra amealhar em terras do Oriente: os dez cantos dOs Lusíadas.
Desiludido do mundo e dos homens, foi residir com a mãe na Mouraria, nada mais esperando da vida senão dar à estampa, antes de morrer, o grande poema no qual exaltava a Pátria que tão ingratamente o tratara. Calando, pois, os últimos resquícios de altivez, foi à cata do Conde de Vimioso, D, Manuel de Portugal, pedir-lhe o ajudasse a levar avante seu propósito de publicar Os Lusíadas. Embora não muito entusiasmado com os versos do bardo zarolho e maltrapilho, o fidalgo recebeu-o benignamente, promtendo interceder em seu favor.
Obtida, graças aos bons ofícios do Conde de Vimioso, permissão real para editar o poema, restava agora a Camões obter o imprimatur do Santo Ofício. E êste, como de uso, só foi concedido depois de o censor, Frei Bartolomeu Ferreira, haver lido a obra minuçiosamente, introduzindo-lhe algumas modificações que julgou necessárias para escoimá-las de certos laivos de impiedade. Malgrado êsse expurgo prévio, julgou-se ainda Frei Bartolomeu no dever de "advertir os leitores que o Autor, para encarecer as dificuldades da navegação e entrada dos portuguêses na Índia, usa de uma ficção dos deuses do gentio. (...) Todavia, como isto é poesia e fingimento, e o Autor, como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos deuses na obra, conhecendo-a por tal, e ficando sempre salva a verdade de nossa santa fé, que todos os deuses do gentio são demônios".
A primeira edição dOs Lusíadas veio a lume nos primeiros meses de 1572. Edição modesta, de cem ou duzentos exemplares provàvelmente, mal impressa, cheia de erros tipográficos. Entretanto, se não conseguiu imortalizar seu autor em vida, logrou ao menos arrancar de D. Sebastião, o jovem monarca no qual depositava Camões suas ilusórias esperanças de um Portugal redimido daquela apagada e vil tristeza em que jazia, uma prova de real magnanimidade: a 28 de julho de 1572, era dado ao conhecimento público o seguinte alvará: "Eu El-Rei, faço saber que, havendo respeito ao serviço que Luís de Camões , cavaleiro-fidalgo de minha casa, me tem feito nas partes da Índia por muitos anos e aos que espero que ao adiante me fará, e à informação que tenho do seu engenho e habilidade e à suficiência que mostrou no livro que fêz das coisas da Índia, me praz fazer-lhe mercê de 15.000 réis de tença anual pelo espaço de três anos sòmente, a contar de 12 de março do referido ano, pagos na minha tesouraria à vista de certificado em como reside na minha Côrte."
Embora julgue Aubrey Bell que naqueles tempos era possível viver desafolgadamente com quinze mil-réis anuais, o certo é que a tença concedida a Camões mal o livrava de morrer de fome. Lembra bem Aquilino Ribeiro que, em fins do século XVI, um carpinteiro lisboeta ganhava 160 réis por dia, em média. Ora, como a tença de Camões correspondia a uma diária de 4o réis - à quarta parte do jornal de um carpinteiro, portanto, - é bem de ver que a liberalidade de D. Sebastião não era lá das maiores.
Com os magros proventos da tença, somados às esmolas recolhidas pelo escravo javanês que trouxera de Moçambique, conseguiu o Poeta, alquebrado pelas muitas vicissitudes, manter-se até 1575, data em que a tença lhe foi renovada. Em 1578 houve outra renovação. Em 1579, atacado pela peste que então asolava Lisboa, caiu o Poeta de cama, gravemente enfêrmo. Antes de morrer, porém, numa carta dirigida a D. Fracisco de Almeida, Camões, fazendo referência ao recente desastre de Alcácer-Quibir (18), que dera por terra com os sonhos desvairados de D. Sebastião, unia seu fim inglório à ruína igualmente inglória de sua Pátria:"'...enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela".
Um frade carmelita, Frei José Índio, deixou sôbre os últimos momentos de Camões um testemunho patético: "Que coisa lastimosa ver-se um grande engenho tão mal logrado! Eu o vi morrer num hospital de Lisboa, sem ter sequer um lençol com que cobrir-se, depois de haver triunfado na Índia Oriental e de haver navegado 5.500 léguas por mar. Que grande aviso para os que, de noite e de dia, vivem a estudar sem proveito, como a aranha a urdir teias para caçar môscas!"
Os restos do Poeta foram sepultados descuidadamente num canto qualquer do cemitério da igreja de Santana, e, sôbre o seu túmulo provável, mandou D. Gonçalo Coutinho, anos mais tarde, erigir uma lápide, cujo epitáfio dizia, lacônica e dramàsticamente:
Aqui jaz Luís de Camões, príncipe dos poetas do seu tempo: viveu pobre e miseràvelmente e assim morreu no ano de 1579.
VI
Todos quantos padeceram, no curso secundário, as torturas de análise lógica do primeiro canto dOs Lusíadas, devem sentir, pela obra de Camões, justificada aversão. A gramática é, de fato, inimiga da Poesia: enquanto esta nos convida amàvelmente ao devaneio, aquela nos constrange, severa, ao raciocínio, e tal constrangimento acaba por converter a fina arte de Camões num enfadonho quebra-cabeças de sujeitos, predicados e complementos.
Vencida, porém, a fase escolar, convém reler Camões, não mais pelo amor da Grmaática, mas pelo amor da Poesia. Então, sim, e só então, é que se poderá descobrir o verdadeiro significado de uma obra cujos encantos nem a usura do tempo nema aridez da Filologia lograram de todo comprometer.
É aconselhável começar essa releitura pelos sonetos pelos sonetos, pois foi nêles que, esquecido da sua sapiência de letrado - sapiência que, sobrecarregando Os Lusíadas de difusas alusões históricas e mitológicas, torna-lhes a leitura tão difícil quão penosa-, alcançou o Poeta uma nitidez de escritura e uma elegância de pensamento verdadeiramente inexcedíveis. Nos sonetos, ademais, sente-se, de imediato, aquêle equilíbrio apontado por José Régio como o triunfo supremo da arte camoniana: o "equilíbrio, só pelos maiores artistas alcançado, suma extraordinária capacidade de expressão exercendo-se sôbre uma personalidade humana extraordinária".
O Camões dos sonetos e, sobretudo, o Camões amoroso. É o Camões amoroso foi bem um homem da Renascença, época na qual o sensualismo pagão e a espiritualidade cristã andavam juntos. Tendo conhecido exuberantemente a realidade física do amor, Camões não ficou, todavia, a ela confinado: buscou antes, pelo pensamento, elevar-se âquele conceito platônico segundo o qual a duradoura união espiritual dos amantes avulta sôbre a sua fugaz união física, a ponto de transformar-se o amador na cousa amada. Conceito magistralmente expresso na primeira quadra de um soneto antológico:
Transforme-se o amador na cousa amada,
Em virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
É bem de ver que êsse muito imaginar não era o de quem se consolasse em viver, pela fantasia, quanto não pudera viver na realidade. A aventurosa existência de soldado, as andanças pelo mundo, os percalços da vida atribulada - tudo serviu para fornecer ao Poeta um rico cabedal de experiência, muito embora êle tivesse de pagá-lo com sangue, suor e lágrimas. Mas não fôra isso, e talvez aquela "extraordinária capacidade de expressão", referida por Régio, tivesse de se exercer sôbre anêmicas figurações intelectuais, empobrecendo assim uma arte cuja grandeza reside precisamente na conjunção de uma vida rica de seiva e de uma poderosa imaginação transfiguradora. É nos sonetos de índole autobiográfica que melhor ressalta essa conjunção. Atente-se, por exemplo, para a fôrça expressiva e para a verdade humana dêstes versos:
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor sòmente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Êste meu duro Gênio de vinganças!
A par dos sonetos, a lírica de Camões inclui elegias e canções de nobre e comovida beleza, assim como deliciosas trovas nas quais, utilizando-se da redondilha - o metro breve dos cancioneiros populares, - traçou o Poeta quadros idílicos de grande encanto. Da redondilha valeu-se igualmente Camões para compor um dos seus mais significativos poemas: o Sôbolos Rios, sofrida meditação sôbre a inanidade das ambições humanas:
Um gôsto, que hoje se alcança,
Amanhã já o não vejo:
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo
Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!
VII
Foi, pois, de matéria ainda imperfeitamente épica que se valeu Camões para compor Os Lusíadas. Se bem o chamamento do mar e o fascínio das terras distantes - dois dos leitmotiv dOs Lusíadas - já fôssem, no século XVI, elementos do folclore lusitano, não o eram ainda aquêles barões assinalados cujos feitos se propôs o Poeta a espalhar por tôda parte.Daí a inexistência, nOs Lusíadas, de heróis individuais comparáveis aos soberbos guerreiros dA Ilíada, sempre tão vivos e convincentes. O fato se explica: Homero trabalhara a História já convertida em Mito; Camões tinha de haver-se coma história ainda em estado de crônica palaciana.
Os Lusíadas são, portanto, uma epopéia sem heróis: menos que os reis cruzados, o Nuno fero, o ilustre Gama, o Albuquerque terríbil ou o Castro forte, o poema celebra o peito ilustre lusitano, vale dizer, a Pátria em sentido coletivo. E, como diz bem Antônio José Saraiva, cuja interpretação estamos aqui seguindo, "à falta de heróis humanos, serve-se (Camões) dos deuses celebrados nas epopéias da Antiguidade e constrói, com os seus diversos caracteres e paixões, uma intriga que é o verdadeiro enrêdo do poema". Os heróis de carne e osso dOs Lusíadas, isto é, os fidalgos portuguêses por cuja sorte se digladiamos deuses do Olimpo, em vez de agirem, como compete a heróis, contenham-se, via de regra, em recitar os longos discursos que o Poeta lhes põe na bôca fazendo praça de sua erudição e maestria (19) verbal.
A essas tiradas retóricas, no entanto, o leitor sensível preferirá os episódios líricos com que Camões, por amor, da variedade, entremeou sua historiografia rimada. O interlúdio de Inês de Castro, por exemplo, cale, sozinho, por tôdas as falas de Vasco da Gama:
Estavas, linda Inês, posta em sossêgo,
De teus anos colhendo doce fruito
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuito,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
Igualmente admiráveis são os passos em que, esquecido por momentos da sua fúria grande e sonorosa de porta oficial, faz Camões ouvir a voz de fraco humano, de homem vivido e sofrido, a quem os infortúnios ensinaram a aborrecer o desejo de mando e a ambição de riqueza:
Ó glória de mandar! ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gôsto, que se atiça
C'ua aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nêles experimentas!
Nesses Camões que, acima da fatuidade dos grandes de seu tempo, coloca, confusamente embora, o "tenaz esfôrço cotidiano para instaurarmos sociedades de maior justiça, semelhantes à que Cristo nos mandou fundar" - a frase é de Antônio Sérgio, - está certamente o Camões aut~entico. E, por autêntico, mortal.
Fonte: PAES, José Paulo. Os Poetas. Coleção Vidas Ilustres. São Paulo: Editora Cultrix, 1960. P. 67-87.
Notas:
(14) Estrofe composta de oito versos de dez sílabas cada, rimadas entre si.
(15) Irmã de D. João III, então Rei de Portugal.
(16) Ocupado por D. João III, com cuja noiva se havia casado D. Manuel.
(17) Funcionário encarregado de arrolar e provisòriamente administrar os bens de pessoas falecidas ou desaparecidas. Espécie de juiz de órfãos.
(18)Batalha travada pelos portuguêses contra os mouros, em agôsto de 1578. Os portuguêses foram derrotados, e as enormes despesas dessa frustrada emprêsa de guerra, com arruinarem as finanças do Reino, foram causa indireta da perda da sua independência.
(19) A palavra mestria na obra, p. 86, foi corrigida para maestria por esta digitadora.
A primeira edição dOs Lusíadas veio a lume nos primeiros meses de 1572. Edição modesta, de cem ou duzentos exemplares provàvelmente, mal impressa, cheia de erros tipográficos. Entretanto, se não conseguiu imortalizar seu autor em vida, logrou ao menos arrancar de D. Sebastião, o jovem monarca no qual depositava Camões suas ilusórias esperanças de um Portugal redimido daquela apagada e vil tristeza em que jazia, uma prova de real magnanimidade: a 28 de julho de 1572, era dado ao conhecimento público o seguinte alvará: "Eu El-Rei, faço saber que, havendo respeito ao serviço que Luís de Camões , cavaleiro-fidalgo de minha casa, me tem feito nas partes da Índia por muitos anos e aos que espero que ao adiante me fará, e à informação que tenho do seu engenho e habilidade e à suficiência que mostrou no livro que fêz das coisas da Índia, me praz fazer-lhe mercê de 15.000 réis de tença anual pelo espaço de três anos sòmente, a contar de 12 de março do referido ano, pagos na minha tesouraria à vista de certificado em como reside na minha Côrte."
Embora julgue Aubrey Bell que naqueles tempos era possível viver desafolgadamente com quinze mil-réis anuais, o certo é que a tença concedida a Camões mal o livrava de morrer de fome. Lembra bem Aquilino Ribeiro que, em fins do século XVI, um carpinteiro lisboeta ganhava 160 réis por dia, em média. Ora, como a tença de Camões correspondia a uma diária de 4o réis - à quarta parte do jornal de um carpinteiro, portanto, - é bem de ver que a liberalidade de D. Sebastião não era lá das maiores.
Com os magros proventos da tença, somados às esmolas recolhidas pelo escravo javanês que trouxera de Moçambique, conseguiu o Poeta, alquebrado pelas muitas vicissitudes, manter-se até 1575, data em que a tença lhe foi renovada. Em 1578 houve outra renovação. Em 1579, atacado pela peste que então asolava Lisboa, caiu o Poeta de cama, gravemente enfêrmo. Antes de morrer, porém, numa carta dirigida a D. Fracisco de Almeida, Camões, fazendo referência ao recente desastre de Alcácer-Quibir (18), que dera por terra com os sonhos desvairados de D. Sebastião, unia seu fim inglório à ruína igualmente inglória de sua Pátria:"'...enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela".
Um frade carmelita, Frei José Índio, deixou sôbre os últimos momentos de Camões um testemunho patético: "Que coisa lastimosa ver-se um grande engenho tão mal logrado! Eu o vi morrer num hospital de Lisboa, sem ter sequer um lençol com que cobrir-se, depois de haver triunfado na Índia Oriental e de haver navegado 5.500 léguas por mar. Que grande aviso para os que, de noite e de dia, vivem a estudar sem proveito, como a aranha a urdir teias para caçar môscas!"
Os restos do Poeta foram sepultados descuidadamente num canto qualquer do cemitério da igreja de Santana, e, sôbre o seu túmulo provável, mandou D. Gonçalo Coutinho, anos mais tarde, erigir uma lápide, cujo epitáfio dizia, lacônica e dramàsticamente:
Aqui jaz Luís de Camões, príncipe dos poetas do seu tempo: viveu pobre e miseràvelmente e assim morreu no ano de 1579.
VI
Todos quantos padeceram, no curso secundário, as torturas de análise lógica do primeiro canto dOs Lusíadas, devem sentir, pela obra de Camões, justificada aversão. A gramática é, de fato, inimiga da Poesia: enquanto esta nos convida amàvelmente ao devaneio, aquela nos constrange, severa, ao raciocínio, e tal constrangimento acaba por converter a fina arte de Camões num enfadonho quebra-cabeças de sujeitos, predicados e complementos.
Vencida, porém, a fase escolar, convém reler Camões, não mais pelo amor da Grmaática, mas pelo amor da Poesia. Então, sim, e só então, é que se poderá descobrir o verdadeiro significado de uma obra cujos encantos nem a usura do tempo nema aridez da Filologia lograram de todo comprometer.
É aconselhável começar essa releitura pelos sonetos pelos sonetos, pois foi nêles que, esquecido da sua sapiência de letrado - sapiência que, sobrecarregando Os Lusíadas de difusas alusões históricas e mitológicas, torna-lhes a leitura tão difícil quão penosa-, alcançou o Poeta uma nitidez de escritura e uma elegância de pensamento verdadeiramente inexcedíveis. Nos sonetos, ademais, sente-se, de imediato, aquêle equilíbrio apontado por José Régio como o triunfo supremo da arte camoniana: o "equilíbrio, só pelos maiores artistas alcançado, suma extraordinária capacidade de expressão exercendo-se sôbre uma personalidade humana extraordinária".
O Camões dos sonetos e, sobretudo, o Camões amoroso. É o Camões amoroso foi bem um homem da Renascença, época na qual o sensualismo pagão e a espiritualidade cristã andavam juntos. Tendo conhecido exuberantemente a realidade física do amor, Camões não ficou, todavia, a ela confinado: buscou antes, pelo pensamento, elevar-se âquele conceito platônico segundo o qual a duradoura união espiritual dos amantes avulta sôbre a sua fugaz união física, a ponto de transformar-se o amador na cousa amada. Conceito magistralmente expresso na primeira quadra de um soneto antológico:
Transforme-se o amador na cousa amada,
Em virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
É bem de ver que êsse muito imaginar não era o de quem se consolasse em viver, pela fantasia, quanto não pudera viver na realidade. A aventurosa existência de soldado, as andanças pelo mundo, os percalços da vida atribulada - tudo serviu para fornecer ao Poeta um rico cabedal de experiência, muito embora êle tivesse de pagá-lo com sangue, suor e lágrimas. Mas não fôra isso, e talvez aquela "extraordinária capacidade de expressão", referida por Régio, tivesse de se exercer sôbre anêmicas figurações intelectuais, empobrecendo assim uma arte cuja grandeza reside precisamente na conjunção de uma vida rica de seiva e de uma poderosa imaginação transfiguradora. É nos sonetos de índole autobiográfica que melhor ressalta essa conjunção. Atente-se, por exemplo, para a fôrça expressiva e para a verdade humana dêstes versos:
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor sòmente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Êste meu duro Gênio de vinganças!
A par dos sonetos, a lírica de Camões inclui elegias e canções de nobre e comovida beleza, assim como deliciosas trovas nas quais, utilizando-se da redondilha - o metro breve dos cancioneiros populares, - traçou o Poeta quadros idílicos de grande encanto. Da redondilha valeu-se igualmente Camões para compor um dos seus mais significativos poemas: o Sôbolos Rios, sofrida meditação sôbre a inanidade das ambições humanas:
Um gôsto, que hoje se alcança,
Amanhã já o não vejo:
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo
Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!
VII
Foi, pois, de matéria ainda imperfeitamente épica que se valeu Camões para compor Os Lusíadas. Se bem o chamamento do mar e o fascínio das terras distantes - dois dos leitmotiv dOs Lusíadas - já fôssem, no século XVI, elementos do folclore lusitano, não o eram ainda aquêles barões assinalados cujos feitos se propôs o Poeta a espalhar por tôda parte.Daí a inexistência, nOs Lusíadas, de heróis individuais comparáveis aos soberbos guerreiros dA Ilíada, sempre tão vivos e convincentes. O fato se explica: Homero trabalhara a História já convertida em Mito; Camões tinha de haver-se coma história ainda em estado de crônica palaciana.
Os Lusíadas são, portanto, uma epopéia sem heróis: menos que os reis cruzados, o Nuno fero, o ilustre Gama, o Albuquerque terríbil ou o Castro forte, o poema celebra o peito ilustre lusitano, vale dizer, a Pátria em sentido coletivo. E, como diz bem Antônio José Saraiva, cuja interpretação estamos aqui seguindo, "à falta de heróis humanos, serve-se (Camões) dos deuses celebrados nas epopéias da Antiguidade e constrói, com os seus diversos caracteres e paixões, uma intriga que é o verdadeiro enrêdo do poema". Os heróis de carne e osso dOs Lusíadas, isto é, os fidalgos portuguêses por cuja sorte se digladiamos deuses do Olimpo, em vez de agirem, como compete a heróis, contenham-se, via de regra, em recitar os longos discursos que o Poeta lhes põe na bôca fazendo praça de sua erudição e maestria (19) verbal.
A essas tiradas retóricas, no entanto, o leitor sensível preferirá os episódios líricos com que Camões, por amor, da variedade, entremeou sua historiografia rimada. O interlúdio de Inês de Castro, por exemplo, cale, sozinho, por tôdas as falas de Vasco da Gama:
Estavas, linda Inês, posta em sossêgo,
De teus anos colhendo doce fruito
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuito,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
Igualmente admiráveis são os passos em que, esquecido por momentos da sua fúria grande e sonorosa de porta oficial, faz Camões ouvir a voz de fraco humano, de homem vivido e sofrido, a quem os infortúnios ensinaram a aborrecer o desejo de mando e a ambição de riqueza:
Ó glória de mandar! ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gôsto, que se atiça
C'ua aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nêles experimentas!
Nesses Camões que, acima da fatuidade dos grandes de seu tempo, coloca, confusamente embora, o "tenaz esfôrço cotidiano para instaurarmos sociedades de maior justiça, semelhantes à que Cristo nos mandou fundar" - a frase é de Antônio Sérgio, - está certamente o Camões aut~entico. E, por autêntico, mortal.
Fonte: PAES, José Paulo. Os Poetas. Coleção Vidas Ilustres. São Paulo: Editora Cultrix, 1960. P. 67-87.
Notas:
(14) Estrofe composta de oito versos de dez sílabas cada, rimadas entre si.
(15) Irmã de D. João III, então Rei de Portugal.
(16) Ocupado por D. João III, com cuja noiva se havia casado D. Manuel.
(17) Funcionário encarregado de arrolar e provisòriamente administrar os bens de pessoas falecidas ou desaparecidas. Espécie de juiz de órfãos.
(18)Batalha travada pelos portuguêses contra os mouros, em agôsto de 1578. Os portuguêses foram derrotados, e as enormes despesas dessa frustrada emprêsa de guerra, com arruinarem as finanças do Reino, foram causa indireta da perda da sua independência.
(19) A palavra mestria na obra, p. 86, foi corrigida para maestria por esta digitadora.
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