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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Ricardo Reis e a Educação pelo argumento

Odete Soares Rangel

É impossível falar de Ricardo Reis, sem falar um pouco de seu criador. Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, a 13 de junho de 1888. Ficou órfão bem cedo e mudou-se para Durbam na África do Sul. Retornou a Portugal em 1905. Na década de 1910 escreveu para algumas revistas, e em 1915, ajudou a fundar a revista Orpheu. Nessa época sua atividade literária já era intensa, especialmente, a criação dos heterônimos para os quais deu nome, biografia, caracteres físicos, personalidade própria e formação cultural. A partir daí, sua vida pessoal confundiu-se com sua atividade literária, alternando-se por algumas atuações como horoscopista por exemplo, crises nervosas e excessos alcoólicos. Vitimado por uma cirrose hepática, faleceu em Lisboa, aos  30 de novembro de 1935.

O poeta disse ter iniciado seus heterônimos com Chevalier de Paz aos seis anos de idade. Relatou que tinha forte tendência para criar um outro mundo igual a este, mas com pessoas que sempre habitaram sua imaginação e fossem diferentes das que conhecia.

O segundo heterônimo a surgir foi Ricardo Reis. Este nasceu sem que Fernando Pessoa tivesse consciência. Foi fruto de esboços de poemas de índole pagã, abandonados e retomados mais tarde.

Ricardo Reis nasceu no Porto em 19 de setembro de 1887, data que precedeu o nascimento do seu criador. Estudou em colégio de jesuítas e formou-se em Medicina. Era estudioso da cultura clássica (latim, grego, mitologia). Defendia a Monarquia; por não concordar com a Proclamação da República Portuguesa em 1910, auto-exilou-se no Brasil. Ao invés de lutar pela sua pátria, ele se voltou contra o nacionalismo e a abandonou.

Ele acreditava no “Fado” de cada um que já nascia predestinado, tendo acima de si o destino soberano que guia sua vida. Aceitou Cristo, mas não lhe deu distinção, considerava-o apenas um deus a mais. Isto fica claro na ode “Não a ti, Cristo, odeio ou menosprezo” na qual ele incluiu Jesus entre os demais deuses do Panteão, porém ele não devia suplantar os deuses antigos.

Sentia-se fruto de uma civilização cristã decadente que caminhava para a destruição. Colocava-se como mero espectador do espetáculo do mundo. O mundo para ele parecia não mudar, porque ele não aceitava as mudanças em si próprio, temendo sofrer, perder sua liberdade e ter a presença da morte antecipada. Pode-se depreender que Reis se enredou na própria trama interna, morrer cedo teria sido sua rendição já que para sua vida não havia outra saída.

A Ode número 337 de Reis conta a história de dois jogadores de xadrez enredados em seu jogo enquanto a cidade de Adis Abeba é invadida, incendiada e seus habitantes trucidados. A partir desse fato, o Reis de Saramago tenta abandonar a atitude de contemplação do espetáculo do mundo, voltando-se para a vida urbana de Lisboa. “Addis-Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os salteadores arrombam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres e crianças, enquanto as tropas de Badoglio se aproximam”. (SARAMAGO, 1988, p. 300) “Lê Ricardo Reis os jornais e acaba por impor a si mesmo o dever de preocupar-se um pouco [...]” (SARAMAGO, 1988, p. 370)

Valorizava a razão e descaracterizava o sentimento, ele preferia não receber amor a perder sua liberdade “Não quero, Cloé, teu amor que oprime/Porque me exige amor. Quero ser livre”. Era um ser resignado e entendia que os sentimentos escravizavam o homem.

Como poeta da natureza, buscou se manter epicurista, evitando experimentar as sensações e, conseqüentemente, o sofrimento que delas decorrem quando estas acabam. Isto pode ser entendido na ode "Vem sentar-te comigo, Lídia (...)" , na qual o desenlaçar de mãos evita paixões mais frenéticas, há o desejo de amar como criança para que as recordações depois da morte sejam suaves.

Reis retornou a Grécia Antiga, buscando inspirar-se nos mestres do passado como Epicuro e Horácio. Suas odes são inspiradas neste último e revelam a preocupação com a efemeridade da nossa existência. Sua linguagem é purista, seguindo rigidamente os postulados gramaticais.

São marcas da sua poesia: a forma estrófica e métrica (ode); os arcaísmos vocabulares e a sintaxe. Ele utiliza-se desta através de inversões, liberdade na ordem das palavras e regências desusadas “[...] Leva Ricardo Reis as malas para a cozinha, pendura na casa-de-banho as toalhas [...] (p. 223), letras maiúsculas no meio de frase depois de vírgula ”Para um hotel, Qual, Não sei [...]” (SARAMAGO, 1988. P. 17).

O vocabulário raro buscado por vezes no latim é outra de suas preferências, assim como o vasto uso de verbos no gerúndio: avançando, batendo, deixando, mugindo, degolando, decrescendo, afastando, morando, disparando, procurando, etc. (SARAMAGO, 1988. Ps. 76-77).

Fernando Pessoa não é apenas um poeta, mas um sábio capaz de criar uma dualidade entre o que ele é e como ele se vê e gostaria de ser. Ele criou os heterônimos para revelar-se através deles, sem ter de desnudar-se para o mundo. Influenciado pela modernidade, pela máquina, ele se tornou tão veloz quanto ela e criou seus heterônimos com múltiplas facetas, homens que refletem, como no caso de Reis que fez uma viagem na antiguidade para buscar inspiração e poder construir seu mundo particularizado a partir do “nada”. É a partir desse “nada” refletido num desejo imenso de criar seres idealizados e multifacetados que Pessoa gerou vida e construiu sua obra, uma vez que ele queria seres diferentes dos que habitavam o mundo que conhecia.

Se argumentar é refletir, duvidar, criar hipóteses e comprová-las, em Ricardo Reis isso seria impossível, pois como comprovar algo que teria sido gerado pela imaginação do poeta. Assim, Reis não seria o resultado de um processo consciente de raciocínio ou reflexão do seu criador. Por outro lado, Fernando Pessoa criou seus heterônimos diferentes dos seres do mundo que conhecia, então ele refletiu sobre esses seres. A partir das suas observações, ele construíu um raciocínio indutivo com base em idéias que resultaram dessas observações, como por exemplo, o uso do lirismo tradicional lá das cantigas de amor de Camões. Isto encontra amparo em Massaud Moisés:

“(...) o poeta não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de pontos dispersos a certeza de que a Humanidade vivia uma profunda crise de cultura e valores do espírito”.

“(...) Fernando Pessoa parte sempre de verdades apenas aparentemente axiomáticas, (...) resultam dum longo e acurado trabalho reflexão analítica em torno daquilo que é motivo de seus poemas”.

José de Nicola diz que Pessoa e seus heterônimos poderiam formar um grande quebra-cabeças chamado Portugal. Ele usou as descrições físicas; a formação cultural, as posturas ideológicas, o homem do campo, o técnico industrial, o monarquista exilado e o nacionalista místico que lembravam os vários tipos humanos de Portugal. Isso prova que Pessoa não só conhecia bem sua cidade, mas para criar seus heterônimos refletiiu sobre antropologia e sociologia.

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