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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Camões, o Gênio Épico Lusitano

Odete Soares Rangel

No ano de 1572, o Mestre Antônio Gonçalves concluiu a impressão da obra "Os Lusíadas", longo poema épico em oitava rima (Estrofe com oito versos de dez sílabas cada, rimados entre si).  Nesse, através de alusões mitológicas e históricas, um tanto complexas, celebravam os feitos heróicos do povo português na guerra e no mar. O autor Luis de Camões, até então pouco conhecido.  Sabia-se que tivera um dos olhos vazados, resultado da sua luta no ultramar contra os mouros. Ele retornou a Pátria pobre e foi morar com a mãe Ana de Macedo.  Os literatos da época não valorizaram o poeta. Seus biógrafos esforçam-se para ocultar o plebeísmo do poeta, atribuem-lhe uma fidalguia inventada, como se só um nobre fosse digno de ser um cantor português.

Os estudiosos da vida de Camões dão-lhe o ascendente Vasco Peres de Camões. Esse passou-se para Portugal no final do Séc. XIV, constituiu família e um dos netos foi o genitor de Simão Vaz de Camões, pai do poeta.

O lugar e a data do nascimento de Camões são dúvidas na literatura. Alguns biógrafos afirmam que ele é originário de Alenquer, outros  que ele nasceu em Santarém. Domingos Fernandes declarou que ele nasceu em Coimbra. A maioria dos camonistas o tem como nascido em Lisboa. Especula-se que tenha nascido em 1524, o que é plausível, pois foi o ano de morte de Vasco da Gama, o protagonista de Os Lusíadas. A infância do poeta é uma incógnita, infere-se que tenha sido de extrema miséria e tristeza. No Séc. XVI, Lisboa viveu um período decadente.

Camões conhecia a literatura clássica de Grécia e Roma. Lia Latim, sabia Italiano, escrevia o Castelhano, mas desconhecia o Grego.

Exilado de Lisboa, Camões foi para Ribatejo, amigos afortunados o acolheram com cama e comida. Desconfortável com essa situação, ele ele enfrentou os perigos e foi prestar serviço militar na África. Seis meses após, se alistou na milícia do ultramar e foi para Ceuta no outono de 1549.  Lá, durante dois anos, sofreu todas as privações de soldado raso.  E foi na África que perdeu o olho direito, em escaramuças dos portugueses X mouros, inimigos de Cristo e seguidores de Mafoma.

Amargurado e desiludido, retornou a Lisboa cerca de 1551, mas era um outro homem. Ele voltou a companhia dos boêmios do Mal-Cozinhado, não para se divertir, mas para afogar suas mágoas.

Em 1552, Camões se envolveu numa briga e feriu Gonçalo Borges no pescoço. Atendendo queixa da vítima, a justiça D`El-Rei deteve o Poeta e o manteve na prisão de Lisboa. O único apoio que teve foi da mãe, que conseguiu tirá-lo da prisão. Um ano depois, a vítima o perdoou, ele recebeu a carta formal de perdão. Entretanto, duas imposições foram feitas para sua libertação: pagar ao Esmoler  D`El-Rei  quatro mil réis em dinheiro para obras de caridade,  e embarcar para a Índia na intenção de servir na milícia do Oriente. Para esse pagamento, sua mãe empenhou suas últimas jóias. Em março de 1553, ele embarcou, como soldado raso, na São Bento, nau incorporada a frota de Fernão Álvares Cabral. Essa aportou em Goa seis meses depois. Camões estava inconformado com o destino da sua vida, quando seu gosto era a Poesia.

Para Camões, Goa era sinônimo de desagregação moral, isso o enojava. Ele expressou essa repulsa num poema em que comparou a Goa lusitana à Babilônia bíblica.

Em poucas semanas, Camões participou de uma expedição punitiva que o Vice-Rei D. Afonso de Noronha enviou contra o rei de Chemba. Vitoriosa, regressou a Goa. Em 1554, sob o comando de D. Fernando de Menezes embarcou numa frota em perseguição a navios mercantes mouros que comercializavam entre a índia e o Egito. Essa retornou à Índia em novembro do mesmo ano. 

Camões tinha direito a férias, porém não eram remuneradas para soldados alistados. Assim, ele arranjou trabalho como escriba público e manteve-se em Goa, com esse mísero dinheiro, até 1556.  Nas horas livres escrevia poemas.

Cumpriu o estágio obrigatório de três anos na milícia do Oriente, foi nomeado como provedor-mor dos defuntos e ausentes em Macau, entreposto comercial dos portugueses na China. Essa fase ficou imortalizada, nas proximidades existia uma gruta denominada de Gruta de Camões, e segundo a tradição, ali ele escreveu a maior parte de Os Lusíadas. Acusado de ter se apropriado de dinheiros que lhe foram confiados, voltou a Goa para responder a inquérito judicial. O navio, em que voltava o aprisionado, naufragou em Camboja. Ele salvou-se a nado, levando consigo seu único bem, o manuscrito de Os Lusíadas. Viveu em companhia de monges budistas, até ser recolhido por um navio português que o deixou em Goa.

Em Goa viveu vários anos marcado pelo estigma de estelionatário, também havia sido preso por dívidas não pagas. Próximo de 1562, do cárcere, em versos humorísticos, o Poeta apelou ao Vice-Rei da Índia portuguesa,   recebeu a liberdade pedida e a proteção desse fidalgo.

Numa situação miserável, ofereceu um banquete aos amigos, o prato servido eram trovas escritas em pedaços de papel.

Em meados de 1567, Camões conheceu o capitão Pero Barreto que levou-o até Moçambique. Por um desentendimento sobre dívidas, este mandou prendê-lo. Ao final de 1569, o historiador Diogo do Couto o encontrou lá na mais terrível miséria. Graças a este, Camões deixou Moçambique e chegou a Lisboa em abril de 1570 trazendo consigo sua maior fortuna, os dez cantos de Os Lusíadas.

Desencantado com o mundo e com os homens, foi morar com a mãe. Tudo que ele desejava era publicar o longo poema em que exaltava a Pátria que tanto o maltratou. Deixando o orgulho de lado, pediu ao Conde de Vimioso, D. Manuel de Portugal, para ajudá-lo a publicar Os Lusíadas. Camões só conseguiu obter o imprimatur do Santo Ofício, após o Frei Bartolomeu Ferreira introduzir algumas alterações no poema.

A primeira edição da obra Os  Lusíadas  veio a público em 1572, com uma tiragem entre 100 e 200 exemplares, cuja edição possuía muitos erros tipográficos. A obra convenceu Dom Sebastião, o qual em junho desse mesmo ano, registou em alvará uma concessão de 15.000 réis de  tença anual pelo espaço de três anos, a contar de 12 de março de 1572, pagos em sua tesouraria à vista de certificado de que Camões residia na sua Corte. Esse numerário, que supostamente permitiria um viver folgado, apenas livrou Camões de morrer de fome. À época, um carpinteiro era remunerado com 160 réis por dia, em média; assim  a tença de Camões que representava uma diária de 40 réis, não era um valor avantajado. Esse, somado às esmolas recebidas de um escravo javanês que trouxera de Moçambique, possibilitou-lhe sobreviver até as renovações das tenças.

Em 1579, o Poeta ficou gravemente enfermo, após ter  contraído a peste que devastou Lisboa. Antes de morrer, redigiu uma carta a D. Francisco de Almeida Camões, na qual fez referência ao desastre de Alcácer-Quibir, batalha entre portugueses X mouros, cuja derrota portuguesa levou a perda da independência, acabando com os sonhos desvairados de D. Sebastião.

O Frei José Índio lamentou ver um homem que lutou bravamente na Índia Oriental e navegou 5500 léguas por mar, ter morrido num hospital de Lisboa, sem um lençol para cobrir-se. Seus restos mortais não receberam um lugar de destaque, foram enterrados num canto qualquer do cemitério da igreja de Santana. D. Gonçalo Coutinho, anos mais tarde, mandou apor uma lápide sobre o túmulo, cuja idéia infeliz no dizer do epitáfio registrava: "Aqui jaz Luis de Camões, príncipe dos poetas do seu tempo: viveu pobre e miseravelmente e assim morreu no ano de 1579".

Analisar o primeiro canto do poema devia provocar uma  aversão nos estudantes secundários, pois estava a arte de Camões a ser considerada um enfadonho quebra-cabeças de sujeitos, predicados e complementos, mas valia relê-lo pelo amor da Poesia, somente assim se compreenderia o verdadeiro significado de tão expressiva obra.

Iniciar a leitura da obra pelos sonetos, contatando com o Camões amoroso, é o que alguns literatos aconselham. José Régio os considera o triunfo supremo da arte camoniana. Para Camões, a duradoura união espiritual dos amantes se intensifica sobre a fugaz união física, transformando o amador na cousa amada.

Ele não se consolava com seu viver fantasioso, com a prevalência de suas aventuras de soldado, andanças pelo mundo e transtornos da sua vida atribulada, cuja experiência custou-lhe muito suor e lágrimas.

Sua lírica incluiu elegias e canções de nobre e singular beleza, assim como trovas espetaculares com o uso de redondilhas e metro breve dos cancioneiros populares.  Camões valeu-se de matéria, imperfeitamente, épica para compor Os Lusíadas, embora o chamamento do mar e o fascínio das terras distantes fossem considerados elementos do folclore lusitano. Daí a inexistência de heróis individuais comparáveis aos soberbos guerreiros de A Ilíada, com sua força viva e convincente. O fato se justifica por Homero utilizar-se da História já convertida em Mito, enquanto Camões tinha a História em estado de crônica palaciana. Assim, Os Lusíadas são uma epopéia sem heróis, o poema épico celebra a Pátria em sentido coletivo. Camões não tendo heróis humanos, valeu-se da sua maestria verbal e dos deuses celebrados nas epopéias da antiguidade para tecer o poema.  O episódio de Inês de Castro, por exemplo, vale por todas as falas de vasco da Gama.

O Camões vivido, sofrido, autêntico, despido do desejo de mando e da ambição de riqueza, tornou-se o imortal da epopéia  lusitana "Os Lusíadas".

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