Odete Soares Rangel
Poesia Trovadoresca
A nova moda poética que consistia em compor poemas para serem cantados surgiu na Provença, Sul da França. O trovador cuidava da letra e da música, e o jogral, acompanhado de alaúde, flauta, harpa ou de lira, incumbia-se de exibi-las. Eram cantigas líricas, nas quais o sentimento amoroso predominava.
As cantigas ou poemas retratavam o ambiente da corte que expressava o sentimento amoroso, inacessível, que o trovador de origem humilde sentia pela dama da aristocracia. Era um relacionamento que permitia falar em vassalagem amorosa. O servilismo do trovador frente à dama representa o amor cortês, o qual pode ser tanto educado e comedido, como o amor típico da corte.
O tema central da poesia trovadoresca era o amor impossível, eis que a dama cortejada era casada ou pertencia a classe social superior a do trovador, assim o sentimento se convertia em admiração, em exaltação das virtudes da mulher desejada. Por isso costuma-se dizer que é um amor idealizado.
Além da poesia amorosa, dirigida à dama ou ao cavalheiro, coexistiu a poesia satírica irreverente que visava ridicularizar a pessoa focalizada. Esta era bem menos cultivada do que a lírica.
Nas cantigas lírico-amorosas, os trovadores dedicaram-se a dois tipos de cantigas: As cantigas de amor e as cantigas de amigo. As de amor eram dirigidas do homem para a mulher e retratavam o sentimento amoroso masculino. Pode-se dizer que é um lamento, pois o amor declarado não podia se concretizar, haja vista a mulher ser comprometida ou pertencer a uma classe social superior a do trovador.
Nessa cantigas, o trovador se dirige à dama com vassalagem amorosa, tratando-a por “mia dona ou Mia senhor”. A cantiga, além de respeitosa enaltece as qualidades da mulher amada. Trata-se do amor cortês, subserviente, numa relação semelhante ao do servo feudal e seu senhor. O trovador fala das emoções do “eu” masculino, assumindo o ideal do amor cortês. O amor é a experiência de sonhar com uma mulher inacessível e quanto mais ela for inatingível, mais representa o símbolo da perfeição e da pureza.
Cantiga de Amor
Quer’eu em maneira de provençal
Fazer agora um cantar d’amor,
E querrei muit’i loar mia senhor
A que prez nem fremusura non fal,
Nem bondade; e mais vos direi em:
Tanto a fez Deus comprida de bem
Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
Quando a faz, que a fez sabedor
De todo bem e de mui gran valor,
E com todo est’e mui comunal
Ali u deve; er deu-lhi bem sem,
E dês i non lhi fez pouco de bem,
Quando non quis que lh’outra foss’igual.
Ca em mia senhor nunca Deus pôs mal,
Mais pôs i prez e beldad’e loor
E falar mui bem, e riir melhor
Que outra molher; dês i é leal
Muit’, e por esto non sei oj’eu quen
Possa compridamente no seu bem
Falar, ca non á , tra-lo seu bem, al.
Cantigas de amigo
Essas cantigas nasceram no território português e constituem um vivo retrato da vida campestre e do cotidiano das aldeias medievais na região. Há nelas, uma forte presença da natureza, sua estrutura é apropriada ao canto e à transmissão oral, apresenta refrão e versos encadeados e repetidos ou ligeiramente modificados (paralelismo).
Essas cantigas são, comumente, construídas em paralelismos: são pares das estrofes que sempre procuram dizer as mesmas coisas. Assim, o paralelismo e o refrão são típicos dessa canções.
Elas se caracterizam pelo fato do trovador cantar a realidade da mulher: o “eu” feminino exterioriza suas emoções , aflições, expectativas, encontros e desencontros.
Contrariamente às cantigas de amor, as de amigo são realistas e apresentam o “eu” lírico feminino, embora o autor seja um homem. São declarações amorosas, dirigidas a um homem por uma mulher. Elas procuram expressar o sentimento feminino através de pequenos dramas e situações da vida amorosa das donzelas, geralmente, as saudades do namorado que foi combater contra os mouros, a vigilância materna, às confissões as amigas.
É comum a mulher dialogando com a mãe, com uma amiga ou com a natureza, sempre preocupada com seu amigo (namorado). Também ocorre do amigo ser o destinatário do texto, como se a mulher desejasse confidenciar-lhe seu amor, embora não o faça diretamente. O texto é dialogado com a natureza, como se o namorado ouvisse suas juras de amor. Geralmente destinam-se ao canto e a dança.
Nas cantigas de amigo, o trovador imaginava como seriam as emoções do eu-lírico feminino em suas relações amorosas. Geralmente a mulher que chora está lamentando a ausência do seu amado ou até o abandono deste por outra mulher. A mulher que fala, normalmente, é a mulher do povo. Estas cantigas são mais espontâneas do que as de amor, os sentimentos estão claramente expressos: o namorado aparece com o tratamento de “meu amigo”.
A linguagem dessas cantigas é menos elaborada e menos musical que a das cantigas de amor, porquanto a vivência se dá em ambientes cotidianos e não em palácios. A presença do refrão é uma constante e, conforme os assuntos que delas constam, podem ser classificadas em:
Alvas: ocorrem ao amanhecer;
Bailias: cenário é uma festa onde se dança;
Romarias: visitas a santuários, enquanto as "madres queimam candeas".
Barcarolas ou Marinhas: falam do temor de que o "amigo" vá às expedições marítimas; do perigo de que ele não retorne;
Pastorelas: cenário é o campo, próximo a rebanhos;
Paralelísticas: A mais antiga forma de poesia genuína portuguesa. De cunho popular. A técnica consiste na repetição da ideia central em duas séries de estrofes paralelas, alterando apenas a última palavra e sempre com refrão. Ex: de D. Denis.
Cantiga de Amigo
Ondas do mar de Vigo,
Se vistes meu amigo!
E ai Deus, se verrá cedo!
Ondas do mar levado,
Se vistes meu amado!
e ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amigo,
O por que eu sospiro!
E ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amado
Por que hei gran cuidado!
E ai Deus, se verrá cedo!
Cantigas de escárnio e maldizer (satírica)
As cantigas satíricas medievais - escárnio e maldizer - são sátiras, escritas em linguagem mais vulgar, cujo objetivo é zombar de alguém, seja uma pessoa decadente, seja alguém que tenha passado por um problema amoroso ou ainda uma mulher namoradeira, ridicularizando a pessoa de forma sutil ou grosseira.
As cantigas de escárnio e maldizer são composições que despertaram grandes comentários na época, nas relações sociais dos trovadores; são sátiras que atingem a vida social e política da época, sempre num tom de irreverência. Essas sátiras de grande riqueza, apresentam um considerável vocabulário, observando-se, muitas vezes o uso de trocadilhos; fogem às normas rígidas das cantigas de amor e oferecem novos recursos poéticos.
Os principais temas das cantigas satíricas são a fuga dos cavaleiros da guerra, traições, as chacotas e deboches, escândalos das amas e tecedeiras, pederastia (homossexualismo) e pedofilia (relações sexuais com crianças), adultério e amores interesseiros e ilícitos.
Mas a sátira quase nunca versava sobre temas morais ou sociais, utilizados para influenciar a opinião pública - ressalvando-se o caso de Afonso X, o Sábio. Detêm-se, sobretudo, em aspectos particulares da vida da corte ou jogralesca e a freqüência de certos motivos denunciam traços marcantes do ambiente social e cultural da época.
As disputas políticas, as questões e ironias que os trovadores se lançam mutuamente e que nos lembram os "desafios" de nossa literatura de cordel, as intimidades de alcova, a covardia ou a falta de jeito de alguns cavaleiros, assim como as mulheres feias são temas frequentes nessas cantigas.
As cantigas dialogadas, quer satíricas ou líricas, são chamadas de Tensão. Esses diálogos podem ocorrer entre a moça com a mãe, com uma amiga, com a natureza, ou, ainda, discussão entre um trovador e um jogral, ambos tentando provar que são mais competentes em sua arte.
As cantigas de Escárnio apresentam críticas sutis e bem-humoradas, sem individualizar a pessoa. Porém esta é facilmente reconhecível pelos demais elementos da sociedade.
Cantiga de Escárnio
Rui Queimado morreu con amor
Em seus cantares, par Sancta Maria,
Por ûa dona que gran bem queria,
E, por se meter por mais trovador.
Porque lh’ela non quis
o bem fazer,
Fez-s’el em seus cantares morrer,
Mas ressurgiu depois ao tercer dia!
Esto fez el por ua as senhor
Que quer gran bem, e mais vos em diria:
Porque cuida que faz i maestria,
E nos cantares que fez a sabor]de morrer i e desi d’ar viver;
Esto faz el que x’o pode fazer,
Mas outr’omem per ren non o faria.
E non há já de as morte pavor,
Senon as morte mais la temeria,
Mas sabede bem, per as sabedoria,
Que viverá, dês quando morto for,
E faz ’s
em seu cantar morte prender,
Desi ar viver: vede que poder
Que lhi Deus deu, mas que non cuidaria.
E, se mi Deus a mim desse poder,
Qual oi” el há, pois morrer, de viver,
Jamais morte nunca temeria.
Nessa canção, Pero Garcia procurou mofar Rui Queimado – trovador com palavras encobertas. A cantiga apresenta quatro estrofes, portanto uma a mais do que normalmente ocorre e esta última é um terceto, denominada de fiinda. A 1° estrofe é o prólogo da cantiga, as duas seguintes é a perquirição intelectual da relação com a dama e a morte (Rui Queimado morria nas canções mas permanecia vivo enquanto homem), a fiinda serve de fecho às restantes e guarda a moral da história. Pero Garcia satiriza o vezo do poeta em se consumir de amor pela dona dos seus cuidados. Com sua morte reiterada lírica, caiu no ridículo. O tom é irônico e conceituoso, porém na 1a estrofe o trovador enfatiza a sátira ao dizer que sua dona não atender-lhe aos rogos. Em “ressurgir ao tercer dia” o conteúdo é sarcástico e irreverente e a exclamação final mostra a situação grotesca em que Rui Queimado se enliou.
Cantigas de Maldizer
As cantigas de maldizer, ao contrário das de escárnio, são diretas, isto é, individualizam a pessoa tecendo-lhe crítica pesada valendo-se de linguagem mais vulgar, às vezes até obscena. Possuem escasso valor estético, mas seu aspecto documental torna imprescindível seu estudo.
As cantigas de maldizer, assim como as de escárnio, muitas vezes são compostas pelos próprios trovadores que compunham a poesia lírico amorosa. Elas expressavam o modo de sentir e de viver próprio de ambientes dissolutos e focavam a vida boêmia e escorraçada vivenciada nos frascários e tabernários.
Cantiga de Maldizer
Ai, dona fea! fostes-vos queixar
porque vos nunca louv' en meu trobar
mais ora quero fazer un cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
Ai dona fea!, se Deus me perdon!
E pois havedes tan gran coraçon (tendes tanto desejo )
que vos eu loe, en esta razon (mereceis a justiça de eu louvá-la)
vos quero loar toda via;
e vedes qual será a loaçon: (louvor)
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito troebei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via; (Louvarei)
e direi-vos como vos loarei;
dona fea, velha e sandia! (louca)
O trovador do séc. XIII, João Garcia de Guilhade, é o autor da referida cantiga. Essa é considerada uma das mais sugestivas e atuais, cujo registro está no Cancioneiro da Vaticana e Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Ele destacou-se pelos privilégios estéticos e pela quantidade de cantigas compostas.
Na cantiga de maldizer que acabamos de ler, o trovador se dirige diretamente à dona “fea, velha e sandia”. Quanto a estrutura temos o esquema do paralelismo, as cobras finalizam em refrão. O trovador, certamente, sabia que sua destinatária esperava uma cantiga de amor, e talvez a atenção do poeta. Entretanto, os defeitos que ela possuía tornavam improcedente e ridícula sua pretensão. O zombateiro trovador no refrão retrata uma situação social que persiste “dona fea, velha e sandia” a qual anseia ser cortejada por um jovem.
Observei que muitas cantigas possuem grafias diferentes nas obras consultadas. Numa palestra ministrada por uma professora portuguesa, ela explicou que os autores vão aportuguesando as cantigas segundo critérios próprios, sendo essa a razão das divergências.