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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

LIBERDADE

Odete Soares Rangel


O texto a seguir é da escritora, poetisa e contista Cecília Meireles (1901-1964). Ela nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Pode-se dizer que ela não teve uma família, pois ficou órfã de pai e mãe aos três anos de idade, época em que seus três irmãos já haviam falecido. Foi criada pela avó materna, "açoriana de São Miguel" (Portugal), a quem afeiçoou-se  e  de quem herdou a ternura. Quando professora, já se dedicava à literatura infantil. Sua poesia apresenta uma certa nostalgia e um desencanto, o que talvez justifique seus temas abordarem a fugacidade do tempo, o caráter transitório das coisas, da existência, cedendo lugar para a solidão e o sonho. Cecília, como muitos outros escritores, teve sua vida marcada pela fatalidade da morte, mas  transformou todo o sofrimento e a solidão,  em arte de qualidade.

Liberdade

Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, por isso sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se têm levantado estátuas e monumentos, por ela se têm até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam “Liberdade, Igualdade e Fraternidade!” nossos avós cantaram “ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”; nossos pais pediam: “Liberdade! Liberdade!/ abre as asas sobre nós!”; e nós recordamos todos os dias que “o sol da liberdade em raios fúlgidos/ brilhou no céu da Pátria...”- em certo instante. (revolução Francesa, 1789)

Somos, pois, criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposição de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre - como diria o famoso conselheiro... é não ser escravo: é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo de partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho... Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autômato e de teleguiado - é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Suponho que seja isso.)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes. (Novo paralelsimo formado por aposto).

Por isso os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sonho das crianças deseja ir. (às vezes, é certo, quebra alguma coisa no seu percurso...)

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!...) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!...

Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos, e perdeu a vida.

E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da liberdade nas mãos!...

São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos que falam de asas, de raios fúlgidos – linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel...

MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho. 2ª ed. Rio de Janeiro, Distribuidora Record, 1966.

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