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Estátua
de Fernando Pessoa
da autoria de Lagoa Henriques,
no café A Brasileira,
no Chiado,
Lisboa
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Estátua
de Fernando Pessoa
da autoria de Lagoa Henriques,
no café A Brasileira,
no Chiado,
Lisboa
Poema em linha reta
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)
Poema em linha reta
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fonte do poema: PESSOA, Fernando. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora, 1972. P. 418.
Um olhar sobre o poema
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fonte do poema: PESSOA, Fernando. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora, 1972. P. 418.
O título do poema “Poema em Linha Reta” de Fernando Pessoa nos conduz a algumas reflexões. Se a vida tem tantos vieses, seria qualquer coisa, menos uma linha reta. O poeta a vê como um percurso com seus naturais desvios, obstáculos e lugares obscuros. “eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”. Neste verso, o poeta parece expressar que não interessa quão longas foram as suas buscas, ele não encontrou ninguém como ele.
No poema, o heterônimo Álvaro de Campos faz uma crítica feroz à hipocrisia. Na terceira estrofe, ele revela-se por demais contrariado com essas fingidas virtudes. Ele não crê que possa haver mudanças, mas insiste que as pessoas devam ter coragem para assumir seus deslizes, ainda que não revelem seus pecados ou atos violentos. “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana / Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia" / "Que confessasse não uma violência, mas uma covardia”.
Na sua época, o poeta já percebia as máscaras usadas pelas pessoas na sociedade, as quais enalteciam seus triunfos, ocultando por trás destes, seus defeitos.
O eu-lírico expõe os seus defeitos (porco, vil, parasita, sujo, ridículo, absurdo, mesquinho submisso, arrogante, etc), mas depois, nas três últimas estrofes, questiona o leitor em busca de respostas para seu descontentamento com as atuações sociais. “Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?”.
No verso “tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”, apesar de Álvaro de Campos se mostrar favorável às convenções sociais, gostaria que os seres humanos se mostrassem como de fato são, sem precisar esconderem-se por detrás de máscaras.
Fernando Pessoa vê os seres humanos com tendências ao desamor, à traição e ao ridículo. Ele repele a rotulação como semideuses (não-humanos).
"Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"
Muitas outras interpretacões são possíveis, depende do sentir e da experiência de vida de cada um. Mas o assunto é contemporâneo, e observa-se que ainda hoje, as coisas são assim. Talvez com uma hipocrisia muito maior, pessoas mostrando-se com um aparente estado de felicidade e de poder, cujos fingimentos, um dia vêm à luz da verdade!
"Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"