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terça-feira, 12 de julho de 2011

Romance LIII ou das palavras aéreas

Odete Soares Rangel

Uganda, foto de M. Wells, de 1980.
As palavras têm um poder que pode causar um bem ou um mal, depende da forma ou intenção com que forem empregadas. Por vezes não precisam ser expressas para que se compreenda uma mensagem, é o que mostra a antítese na foto ao lado. As mãos se opõem pelo tamanho, pela cor, pela aparência mostrando duas situações e etnias distintas. Mas unidas expressam uma única mensagem: um manifesto contra a trágica situação de fome na África.


No poema, a antítese está presente em vários momentos, com esses dizeres contraditórios, pode tiranizar ou libertar o homem. Na última estrofe "Sois um homem que se enforca" se reporta a morte, enquanto que esta vem substituir o sopro de aragem em "Éreis um sopro de aragem..."   Na quarta estrofe, fica bem presente o poder que a palavra exerce na comunicação. Seu uso tem consequências, os sons falados se desfazem, mas o impacto causado fica. Com ela você critica, elogia, discrimina, registra, constrói, ela pode ser uma "arma letal" se usada de forma inconsequente, impensada, maldosa. Uma vez dita, não permite passar uma borracha e apagar como na escrita. Então pense nisso!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois do vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!


Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...


A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...


Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
-e estais na tinta que as molha,
-e estais nas mãos dos juizes,
-sois o ferro que arrocha,
-e sois barco para o exílio,
-e sois Moçambique e Angola!


 Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...

Ai palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?


- Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
-a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...


 Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...


Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
- sois um homem que se enforca!


MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1974. p. 442-94.

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