Odete Sores Rangel
Os comentários a seguir são embasados no artigo “Alguma coisa sobre Pablo Neruda e a sua poesia” de Jorge Edwards. A poesia desse autor reflete sua intimidade com o mar, no qual símbolos maternais se transformam numa força traiçoeira que destrói vidas. Mais tarde Neruda se reconcilia com o mar e muda-se com sua mulher Matilde para junto do oceano. Segundo Edwards foi nesse lugar que Neruda descobriu o manual da sua sabedoria, alimentada sem cessar por encontros e comprovações alegres ou melancólicas com humor de outono.
O poeta se sente agredido com a destruição das coisas e dos seres e via o reflexo disso em cada morte individual. Ele ficou indignado com o desaparecimento dos seus amigos Garcia Lorca e Miguel Hernandez na guerra civil Espanhola, mas este conflito contribuiu para que ele descobrisse a solidariedade humana e a alegria. Essa mudança levou-o a acreditar na vida, a morte de um amigo transformou-se de um golpe fúnebre numa ausência sentida de não mais poder compartilhar com esse, as coisas desta terra/mundo.
Neruda foi muito homenageado durante a vida, mas segundo Edwards também foi muito criticado e acusado de ter sido alheio a toda a formação literária. Na sua obra, ele não se cansou de render homenagens à tradição literária. Nos últimos anos evocou com freqüência sua infância, seu amor e a relação com a natureza.
Segundo Jorge Edwards, Neruda, através de seus jogos poéticos, mantivera-se fiel ao seu amor pela natureza, o qual transformou-o em poeta antes que se desse conta, os outros amores e o trabalho originaram-se desse.
Edwards diz que se pode atribuir a Neruda uma estrofe de Fernando Pessoa “ Um poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente”. Assim quase conseguia convencer que cada etapa da sua poesia era definitiva, mas logo surgia outra e mais outra.
Ele não possuía habilidade para trabalhar com as mãos e vivia rodeado de objetos que ganhavam vida nas suas criações poéticas. E, provavelmente, vem daí o uso constante da mistura de diferentes elementos na sua poesia, o que dificulta a leitura. Sua poesia é muito rica em mensagens, elementos naturais, mistura de elementos e sentimentos, existência e morte. Assim é muito figurativa, metafórica dando margem para múltiplas interpretações. Lembro que li em algum livro desse autor que a linguagem da poesia não pode ser reduzida ao âmbito da razão. Assim, espero divagar um pouco e não errar tanto.
Pensar Neruda é uma tarefa difícil para mim, pois quase nada sei sobre sua obra e vida. Confesso que quando iniciei a ler os sonetos não julguei-me capaz de analisá-los, tampouco tinha vontade de fazê-lo. À medida que fui prestando atenção, comecei a “viajar” e tive algumas percepções.
Eu os escolhi, dentre os demais, por uma questão de empatia, eles me atraíram por algo que não sei definir, mas não vejo nenhuma relação entre esses e minhas experiências vividas, exceto pela questão da comparação com uma escultura já que meu marido é escultor e pelos poetas que se inserem na literatura. Ler sobre poetas e criação literária é algo que me fascina, que faz parte da minha vivência de estudante. Considero que a literatura é uma das disciplinas que mais contribui para ampliar nossa visão de mundo. Entender o canto dos poetas é encaminhar-nos por esse novo caminho cultural, sobre o qual desejo descobrir sempre mais. A inscrição (G.M.), por exemplo, é um enigma que gostaria de decifrar. Hoje eu não os levaria comigo para uma ilha deserta ou qualquer lugar do mundo.
Li-os uma vez e não me despertaram sentimentos e sensações, apesar da reconhecida importância da obra e conhecimento de Neruda da poesia universal. Tentei escrever sobre e não conseguia, frente a eles me senti uma analfabeta, custei a entender essa mistura de elementos que ele faz. Isto é, se é que entendi, se o que conjeturei sobre sua poesia e intenção ao escrevê-la procede.
Possíveis leituras dos sonetos VIII, XLVIII, LIX e XCIII.
Esses quatro períodos do dia podem fazer alusão as quatro diferentes fases da vida dele: Manhã - Infância, meio-dia – juventude, tarde – maturidade e noite – velhice. Os elementos que me levam a depreender esse sentido são o fato dele fazer referência a uma pessoa que ele ama, podendo ser um link com a perda da mãe na infância aos dois anos de idade e ao fato dele estar num lugar alto de onde pode ver tudo, numa alusão ao Chile seu país de nascimento.
Essas fases do dia também podem referir-se a estrutura da sua obra, na infância e juventude o mar são os elementos maternais e o envolve por completo, na maturidade ele se volta para o mar como algo traiçoeiro que tira vidas e na velhice ele se reconcilia com o mar novamente, desta vez num tom de comunhão. O mar é parte integrante da sua poesia.
Uma outra possibilidade é que essas quatro fases poderiam representar um ciclo da vida dele: infância, juventude, maturidade e velhice. Talvez o mais correto seja dizer que elas se refiram as diferentes fases do amor dele por Matilde. Manhã e juventude seriam o nascimento do amor dele por ela; a tarde a descoberta desse amor impossível porque ele era casado com outra, e a noite a promessa de um amor que jamais terá fim.
Numa outra leitura vejo no primeiro soneto, uma possível comparação da mulher amada a uma escultura, cujo processo de criação é descrito: feita de argila cujo trabalho vai ao forno, lá aprisionada deixa escapar os gases para não estourar e quando queimada ganha uma cor desbotada em relação a original, quando pronta tem os olhos melancólicos e se torna em algo rígido, duro como pedra. Depois vemos um momento precioso da cor do ouro, o sol de outono e aqui me parecia que para ele o outono seria como a primavera para nós onde tudo floresce e dá frutos. Entretanto, verifiquei numa outra poesia, que ele atribui ao outono encontros e comprovações alegres ou melancólicas. Temos o pão que alimenta e não pode faltar assim como o amor, a farinha pelo céu poderia ser as nuvens. Ele tenta justificar seu amor, pois não pode deixar de amá-la porque ela representa sua própria vida. Expressando seu amor por Matilde, ele também o expressa pela natureza, dando a entender que ambos são inseparáveis. E, finalmente, como um adolescente apaixonado ele vive para amá-la, ela está presente em tudo e sem ela sua vida não teria sentido. Numa outra perspectiva, o poeta tenta encontrar razões para justificar o seu amor, toda a natureza conspira a favor dele, Matilde é sua razão de existir e é através da vida dela que ele vê as outras pessoas. Digo Matilde, porque ele os dedicou a ela, ratificando que ela foi sua fonte de inspiração.
No segundo soneto, possível fase da juventude, as pessoas namoram e não estão casadas, não possuem ligações sérias, compromissos. A única ligação entre elas não é uma aliança, mas sim o cheiro particular que os atrai. Não estando casados, não brigam, a paz e as palavras são preservadas pelos apaixonados que só sabem expressar belas palavras e bons sentimentos. As pétalas poderiam representar os conselhos recebidos dos mais velhos. Poderia aludir ainda ao vigor para a vida sexual própria dessa fase da vida. Uma outra leitura é de que o soneto fala de duas pessoas que se amam e por isso vivem em comunhão de corpos e de pensamentos, nem suas sombras se separam. A lua ilumina o caminho por onde andam e o sol mantendo a cama aquecida onde o amor se consolida, mantém o amor vivo. Portanto, natureza e sentimento estão interligados. A pessoa feliz é como uma torre transparente, não é preciso esforço para enxergar essa alegria. A noite que significa escuridão, obscuridade acarinha-os, pois os recebe com afortunadas pétalas, estas normalmente são macias e perfumadas. O amor correspondido não conhece limites, barreiras, fim nem morte. Apesar dos encontros e desencontros pela vida, o sentimento é perene. Finalmente, penso que os dois amantes deixam de lado a materialização do dia a dia e se voltam só para o prazer, este se eterniza porque ninguém lhes pode tirar o que viveram e amaram.
No terceiro soneto, a inscrição (G.M.) poderia estar ligada a Garcia Lorca e Miguel Hernandez grandes amigos do poeta, cuja perda ele lamenta. Como pouco sei sobre ele também podem referir-se a outras pessoas e situações. Porém pelo teor do soneto acredito referir-se ao Monge e Gabriela Mistral, ou a ela mais provavelmente. Ela era diretora do liceu de Temuco, Pablo relata um encontro deles em que diz ter reconhecido no rosto dela o do seu melhor amigo e poeta, o Monge e esfaqueador perigoso, que tinha no rosto duas grandes linhas. O poeta se apegava demais aos seres marginalizados pela sociedade, assim o Monge era sua companhia preferida nos passeios pelo bosque de Boroa. Para Neruda esse paralelo tinha uma razão de ser, ambos representavam uma forma de liberdade: ele a do poeta ou homem que vive fora da lei; ela a da poetisa no contato com a terra.
la cicatriz vertical de un cuchillazo... y su sonrisa blanca, horizontal, llena de simpatía y picardía.
la misma sonrisa entre pícara y fraternal y los ojos que se fruncían, picados por la nieve o la luz del pampa. (Antología poética,, 1997)
Esse soneto parece ter relação com os poetas que são marginalizados pela sociedade, muitas vezes recebem reconhecimento quando morrem. Eles vivem se escondendo atrás da sua poesia, esta governa a vida do poeta. A poesia foi atingida pela repressão, os poetas foram silenciados no seu processo criativo. Mas dormir sem silêncio também poderia significar que ele se tornara uma pessoa pública. O poeta estando morto vai reinar em outro reino, vai se reunir a outros poetas. Esse encontro é a única coisa certa. E, então os oradores dissecam a poesia de qualquer jeito, agridem-na e destroem pois a morte calou a boca do poeta, ele não pode mais contestar. Este soneto parece refletir a indignação do poeta com a marginalização que a sociedade impõe aos seres aqui representados pelos poetas que são perseguidos durante a vida e a morte. Quando Pablo fala dos cavalos arrogantes governados pelos intrusos e sua boca está fechada ele também pode estar se reportando à ditadura e a repressão que ele enfrentou na Espanha e Chile.
O último soneto faz referência a Matilde com quem se casou aos 51 anos, seu amor eterno na vida e na morte. E, também, à velhice quando não se tem mais agilidade nas mãos, já não se fala com tanta eloqüência e o corpo não tem mais a mesma saúde e vitalidade. O corpo se deteriora, mas os sentimentos verdadeiros persistem, ele levará o último beijo quando morrer, este se eterniza.
Em todos os quatro sonetos a natureza está presente. São descritos elementos naturais, flores, árvores, espaço geográfico e físico, objetos, sentimentos e sensações, tudo para dar vida a poesia e por conseguinte expressar, metaforicamente, os sentimentos do poeta. Sua infância, seu amor por Matilde e a relação com a natureza são as fontes de energia para sua composição poética.
ANEXOS – Sonetos Pablo neruda
Soneto VIII - Manhã
SE NÃO FOSSE porque têm cor-de-lua teus olhos,
De dia com argila, com trabalho, com fogo,
E aprisionada tens a agilidade do ar,
Se não fosse porque uma semana és de âmbar.
Se não fosse porque és o momento amarelo
Em que o outono sobe pelas trepadeiras
E és ainda o pão que a lua fragrante
Elabora passeando sua farinha pelo céu,
Oh, bem-amada, eu não te amaria!
Em teu abraço eu abraço o que existe,
A areia, o tempo, a árvore da chuva,
E tudo vive para que eu viva:
Sem ir tão longe posso ver o mundo:
Vejo em tua vida todo o vivente.
Soneto XLVIII – Meio-dia
DOIS AMANTES ditosos fazem um só pão,
Uma só gota de lua na erva,
Deixam andando duas sombras que se reúnem,
Deixam um só sol vazio numa cama.
De todas as verdades escolheram o dia:
Não se ataram com fios senão com um aroma,
E não despedaçaram a paz nem as palavras.
A ventura é uma torre transparente.
O ar, o vinho vão com os dois amantes,
A noite lhes oferta suas ditosas pétalas,
Têm direito a todos os cravos.
Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
Nascem e morrem muitas vezes enquanto vivem,
Têm da natureza a eternidade.
Soneto LIX – Tarde
(G.M.)
POBRES poetas a quem a vida e a morte
Perseguiram com a mesma tenacidade sombria
E logo são cobertos por impassível pompa,
Entregues ao rito e ao dente funerário.
Eles – obscuros como pedrinhas – agora
Detrás dos cavalos arrogantes, estendidos
Vão, governados ao fim pelos intrusos,
Entre os acompanhantes, a dormir sem silêncio.
Antes e já seguros de que está morto o morto
Fazem das exéquias um festim miserável
Com pavões, porcos e outros oradores.
Espreitaram sua morte e então o ofenderam:
Só porque sua boca está fechada
E já não pode contestar seu canto.
Soneto XCIII - Noite
SE ALGUMA VEZ teu peito se detém,
Se algo deixa de andar ardendo por tuas veias,
Se tua voz em tua boca se vai sem ser palavra,
Se tuas mãos se esquecem de voar e dormem,
Matilde, amor, deixa teus lábios entreabertos
Porque esse último beijo deve durar comigo,
Deve ficar imóvel para sempre em tua boca
Para que assim também me acompanhe em minha morte.
Morrerei beijando tua louca boca fria,
Abraçando o cacho perdido de teu corpo,
E buscando a luz de teus olhos fechados.
E assim quando a terra receber nosso abraço
Iremos confundidos numa única morte
A viver para sempre de um beijo a eternidade.