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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Sorriso interior


Odete Rangel em Imbituba Casa do Lago

Sorriso interior de Cruz e Sousa


O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo este brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranquila.


Os abismos carnais da triste argila,

Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe esta glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

Fonte do poema: ANDRADE, Fernando Teixeira de. Coleção OBJETIVO. Sistema de Métodos de Aprendizagem. Livro 14. P. 191

Sorriso Interior está inserido na obra Últimos Sonetos, livro póstumo publicado em 1905, oito anos após a morte do poeta. Algumas pessoas denominaram esse soneto de testamento espiritual de Cruz e Souza.

Gosto de divagar pelas palavras e deixar que elas me levem até onde meu sentir me estabelece o limite. Nesse soneto é como se o poeta estivesse fazendo um laboratório, experimentando seus sentires e deixando-os fluírem.

Ele é um convite a reflexão sobre o ser humano, especialmente sobre esse homem ideal que é descrito, e que todo ser humano desejaria ser igual.   Já na primeira estrofe mostra o homem com o pensamento firme (jamais vacila).

O tom otimista e definitivo mostram uma segurança e um otimismo não peculiar em Augusto dos Anjos que viveu lutando para combater o preconceito de que era vítima e que, inclusive, o impediu de assumir um cargo de promotor em Laguna, no estado de Santa Catarina, no Brasil.

É como se ele tivesse se encontrado espiritualmente, e se libertado do que o aprisionara durante toda a vida: o preconceito, a dor, a impotência.  Os vermes da Psicologia de um vencido cedem lugar a esse ser seguro, lutador e vencedor.


 Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco, 
Este ambiente me causa repugnância... 
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia 
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas 
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los, 
E há-de deixar-me apenas os cabelos, 
Na frialdade inorgânica da terra!

Imbituba Casa do Lago

Alguns poderiam pensar que a Natureza (com letra maiúscula) aqui representaria todos os seres que constituem o universo. Eu mesma, numa primeira leitura, a vi como expectadora das glórias (vitória). Pensei que a grandeza do ser e a da natureza se fundiam, como se ambos florescessem, gerando novas vidas. Mas numa revisão, creio que a Natureza assim grafada, signifique a essência do ser humano (recurso simbolista).

O ser que é ser transforma tudo em flores... Cruz e Souza deseja passar a ideia de que o ser pode transformar as coisas ruins e dificuldades e superá-las. A palavra tudo, no inicio deste último terceto, pode estar representada como uma metáfora destas coisas ruins, dos sofrimentos e das dificuldades, assim como uma máxima para não se deixar abater por elas, mas transformá-las em coisas boas e positivas, representadas pelo vocábulo flores, as quais amortizariam ou levariam as dores embora.

Guerras imortais. Pode-se pensar em um duplo sentido nessa expressão. Tanto poderia referir-se a guerras que pela dinâmica, gravidade ou duração jamais são esquecidas, assim como possíveis guerras civilizadas sem mortes, pois vítimas sempre existirão, ou ainda a guerra imortal da fome e das tragédias que atormentam e vitimam os seres humanos.

O brasão augusto (honra, glória, proteção)  pode ser entendido como um amuleto de sorte para vencer as disputas, para tornar o homem invencível, mas também como um arma infalível que iria levá-lo ao sucesso. 

No primeiro verso do segundo quarteto (Abismos carnais) está evidenciada a vitória do homem sobre os obstáculos, pois ele os vence sem dificuldades e com serenidade. Triste argila (usada para esculturas) pode referir-se a criação do homem.

Curioso que nas águas do dilúvio que representam catástrofes e destruições associadas ao sofrimento, o eu lírico consegue cantar como se estivesse feliz. Assim, fica implícito que o sofrimento é necessário para o engrandecimento do homem, mas uma vez superado, ele fica apenas no externo.  Por dentro, é o sorriso que vibra e domina!  

2 comentários:

Elinho disse...

Belíssima reflexão do poema.
Parabéns.

Odete Rangel disse...

Boa noite Elinho,

Obrigada por sua participação no blog e por seu gentil comentário. É muito bom pegarmos um texto e tentarmos entender o que está implícito, além do que está aparente nele.

Abraço,