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domingo, 13 de outubro de 2013

A Segunda Vida de Machado de Assis

Odete Soares Rangel



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Meu entendimento do conto

O conto A Segunda Vida de Machado de Assis é permeado pela marcação do tempo (datas, séculos, tempo de espera, de vida, de voo, distâncias, horas...). Veja frases de  Machado sobre o tempo.


" O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo: uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima do invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro. "

"O tempo é um rato roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto."

Há uma frase dele que diz: "Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto."

Creio que ele fez isso nesse conto, explorando um universo desconhecido para poder narrar a sua existência.  É ele, José Maria, mais um dos personagens defunto de Machado, que conta sobre suas primeira e segunda vidas ao Monsenhor Caldas. Este,  acredita que José Maria seja um maluco, então interrompe a narração para ordenar ao preto velho que vá chamar a polícia e peça-lhe que traga reforços. A interrupção é tão súbita quanto o início do conto que já inicia por essa. A narrativa é construída pelo diálogo entre Mosenhor Caldas e o protagonista José Maria. Nada tão estranho assim, pois a loucura é tema recorrente nos contos de Machado de Assis. Ele dizia que "A loucura é uma ilha perdida no oceano da razão."

Enquanto esperam, vai distraindo o visitante e concordando com ele, pois louco não se contraria. José Maria informa que falecera no dia 20 de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã, quando tinha 68 anos

Sua alma teria voado pelo espaço até perder a terra de vista. Subindo na distância de quarenta mil léguas ouvira uma deliciosa música, e logo que chegou a cinco mil léguas, foi levado por uma multidão de almas a um palanquim.  Esse local era indefinível e incompreensível, foi ele recebido com festas que duraram dois séculos, ou nas contas dos vivos 48 horas.  Então, ele descobriu que sua alma era a de número mil,  razão pela qual fora premiado com o retorno à Terra para uma nova vida. Tentou recusar, mas isso não lhe era facultado. Competia-lhe apenas optar por retornar como príncipe ou como condutor de ônibus. Mas lembrando as palavras do pai, “quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje”, não importou-se em ser pobre ou rico, seu único desejo era voltar com experiência. Isso lembra a história de Orfeu, que graças ao acorde de sua lira, conseguiu retornar do Hades (Deus que comanda o mundo dos mortos). 

E José Maria continua narrando sobre a sua “segunda vida”.  O percurso de retorno durou nove meses. Na chegada, caiu nos braços de uma ama de leite, e chamou-se José Maria.  Tinha 30 e poucos anos, era pálido, tinha um olhar mole e apagado. Chama a atenção apesar da pouca idade, a aparência senil e a bengala atravessada sobre as pernas. Esta pode significar uma ferramenta de defesa contra esse mundo novo e desconhecido, ou de apoio pelo cansaço após a longa viagem. Não deveria ser uma ferramenta para atender uma deficiência física.  Machado dizia que não importava ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem.

Mosenhor recebeu José Maria, mas 10 minutos depois estava certo de que era um lunático. Temia pela sua segurança e a do preto velho, pois o que poderiam fazer contra qualquer agressão desse homem forte e louco. Assentiam com tudo que ele falava, enquanto esperavam a polícia.

Machado elogia o poeta, “Bom poeta, o padre Caldas. Poesia é um dom, eu nunca pude compor uma décima”. Mas contrariamente ao seu discurso, percebe-se evidências de que é no Mito de Er, narrado por Sócrates no mesmo livro X da República, que ele parece se inspirar para compor a narrativa.

José Maria anuncia seu renascimento em 05.01.1861Não aproveitara sua juventude para não se expor a contusões, a sangue e a levar pancadas. Era tido como um tolo e moleirão, fugia de tudo. A infância de hoje e a escola eram um tédio, fica implícito que preferia a outra, a das cabeças quebradas de outrora. 

José Maria tinha 19 anos quando conheceu a ceia de homens e mulheres, lá sentiu-se com um apetite de 20 anos. Recusou comer e beber, pois lembrou-se de uma indigestão que tivera a 40 anos atrás. Justificou mentindo estar indisposto, acabou apaixonado pelas duas moças que cuidaram dele.

Ele segue a sua narração: "A minha segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver... Não, a comparação não é boa." Como lhe parece que vivo?"  Aqui Machado faz uma alusão a Eurico, o Presbítero de Alexandre Herculano. 

Mosenhor responde: como um pássaro batendo as asas e amarrado pelos pés.  Ele passa a movimentar-se imitando o pássaro, mas mantendo os pés unidos para simular o amarrado. Lembremo-nos de que a morte na arte grega era representada como um belo jovem nu Tánatos (Thanatos), que representa a personificação da morte, ou um ancião de barba e com asas. 

Tánatos - google
Os pássaros estão presentes nos mitos, são os atributos dos Deuses. Por exemplo, a pomba é o passaro de Citera, consagrado a Afrodite, o pavão é o de Hera, a águia está associada a Zeus, a coruja a Atena. Eles acompanham seus heróis  nas suas viagens. Alguns personagens são transformados em cisnes, pombos... Já no dicionário de símbolos, os pássaros são intermediários entre o céu e a terra, como encarnações da alma. No Taoismo dizia-se que depois da morte, a alma deixava o corpo físico como pássaro.

José Maria relata o que o trouxe ali, sua paixão pela viúva D. Clemência. Ela tinha 26 anos, olhos expressivos e um buço espesso. Haviam se conhecido um ano atrás em Cantagalo, ele passou a frequentar a casa da família em Matacavalos. Uma noite, o patamar da escada foi o palco do seu primeiro beijo. Ele ficou tonto e permaneceu com o sabor do beijo na boca.

Gastou duas horas imaginando pedir a mão dela no fim de semana e casar em um mês. Mas quando chegou em casa, após a meia noite, essa fantasia esvaiu-se, pois julgava que o amor poderia durar pouco e vir o fastio. Sentia uma violenta paixão, considerou-se casado com uma linda criancinha.  

Avaliou as possíveis causas do amor acabar (crises, problemas financeiros, doenças...) e decidiu não casar, mas padeceu muito nessa noite. Deixou de frequentar a casa de D. Clemência por 6 dias, mas sucumbiu às cartas e às lágrimas. Exigiu que ela rompesse com tudo e todos os laços familiares e fosse morar com ele. Apesar de humilhada, ela aceitou, e foi recebida com festas.

Mas no dia seguinte o encanto se quebrou, ele recebeu uma carta anunciando uma herança de um tio de Santana do Livramento que falecera. Fica implícito que ela sabia da herança de 20 mil contos e por isso abriu mão de tudo, para viver com ele. Depois envergonhado, pediu desculpas. Passaram-se três dias e ela não cedeu. Então ele comprou um revólver, mostrou a ela e ameaçou se matar se ela não o perdoasse. 

Ele mostrou a arma ao Mosenhor que empalideceu. Contou que chegou a dar um tiro, mas daí ela o perdoou. Decidiram casar, mas ele tinha uma condição, doar a herança para a Biblioteca Nacional. Ela aceitou feliz e casaram três semanas depois.

Mas o trágico aconteceu. Vivia em sustos, desgostos e desconfianças. A experiência não o salvou desse infortúnio, não lucrou nada, perdeu, pois foi levado ao sangue.  Sonhou que o Diabo lia o evangelho para ele, na parte em que Jesus falava dos lírios, colheu uns e deu a José Maria dizendo que eram os lírios da escritura, e também os seus vinte anos. O Diabo ordenou que ele cheirasse os lírios, quando ele o fez, saiu de dentro deles um réptil fedorento e torpe.  Jogou longe e o Diabo riu dizendo que eram os seus vinte anos.


José Maria tinha uma fisionomia diabólica e quando abriu os olhos viu a mulher  aflita e desgrenhada. Seus olhos eram doces, mas olhos doces também trazem o mal pensou. Diante da fisionomia transtornada dele, o padre ficou apavorado e começou a recuar.  E José Maria  gritava "Não, miserável! não! Tu não me fugirás!" investindo em direção ao padre.

Na escada acima ouvia-se um rumor de espadas e pés.  Eram os guardas que vinham detê-lo.

Notas:

1. No link http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000207.pdf você pode ler o conto completo A segunda vida de Machado de Assis.

2. O conto A Segunda Vida de Machado de Assis foi originalmente publicado na Gazeta Literária, no ano de 1884. Posteriormente foi compilado em "Histórias Sem Data"

3. As passagens que se referem a tempo estão em negrito no texto.

4. Os links contidos são de materiais de ótima qualidade de outros autores, os quais poderão esclarecer para o leitor algumas passagens que possam fugir a sua compreensão.

4 comentários:

Arione Torres disse...

Oi querida amiga Odete, Machado de Assis foi um grande homem!
Ótimo post!
Beijos e boa semana!

Odete Rangel disse...



Adoro tudo que Machado escreveu, é um grande escritor!
Com ele viajamos para mundos distantes e infinitos.
Obrigada por se fazer presente sempre através do blog!
Bjos

Anônimo disse...

Que tuuuudo ele é demais

Odete Rangel disse...

Boa tarde,

Realmente suas obras são encantadoras e sempre nos remetem para novas interpretações e descobertas. Ler Machado é mágico!

Abços a todos